Crise dos mísseis de Cuba
Duas potências mundiais e Cuba, num dos episódios chave da Guerra Fria.
Acrise dos Mísseis de Cuba tem início a 16 de outubro de 1962, quando um avião espião U-2 norte-americano descobre bases de mísseis soviéticos instaladas em Cuba. A localização assegura alcance suficiente para um ataque direto aos Estados Unidos da América, uma vez que a distância era apenas de 150 km. Dois dias depois, por ordem do presidente John Kennedy, têm início manobras militares perto de Porto Rico. Da Casa Branca não chega qualquer tipo de explicação oficial. Este momento de tensão mundial entra para História, como representação o clímax da Guerra Fria.
O Bloqueio
A 22 de outubro, o presidente John F. Kennedy dirige-se ao país e ao mundo, através da televisão e rádio, verbalizando a ameaça: «Essas bases não devem ter outro objetivo que o ataque nuclear contra o mundo ocidental». «Nem os Estados Unidos nem a comunidade internacional irão aceitar esta ameaça».
No mesmo discurso, Kennedy anuncia a sua decisão de bloquear os navios russos que fazem o transporte de armas para a ilha de Fidel Castro. Nikita Khrushchev responde que os seus navios prosseguem a marcha e o mundo fica em suspenso. O conflito nuclear parece iminente.
As notícias seguem-se com apreensão e receio nos dias subsequentes e faz-se fila para comprar o jornal.
Em Portugal, também é notícia
Os jornais portugueses também seguem o desenrolar dos acontecimentos.«A ameaça nuclear paira sobre o mundo» é a manchete doDiário de Notícias a 24 de outubro. O Diário de Lisboa também faz manchete «Os EUA decididos a cortar o caminho a um grupo de navios soviéticos que navegam no Atlântico com rumo a Cuba».
O Fim provisório
Oficialmente, a crise termina a 28 de outubro, quando Kennedy e Nikita Khrushchev chegam a acordo para retirar os mísseis de Itália e Turquia, por parte dos Estados Unidos, e os de Cuba, por parte da União Soviética. Mas o debate em torno dos contornos deste episódio está longe do fim.
O poder da televisão
A decisão de Kennedy em anunciar oficialmente o bloqueio através da televisão, a 10 de outubro de 1962, em vez dos canais diplomáticos tradicionais, é parte de um plano para dar ao ultimato a «máxima força», segundo o historiador dos media Erik Barnouw. Tal decisão é importante estrategicamente e politicamente depois do fiasco com a invasão da Baía dos Porcos que deixa o Presidente vulnerável.
«O compromisso assumido na televisão, retransmitido em todo o mundo através do satélite, criava uma situação que parecia tornar impossível qualquer retrocesso», escreve Barnouw.
Atualmente é consensual entre estudiosos e académicos que o discurso de Kennedy na televisão e rádio leva a uma mudança generalizada na atuação da cobertura mediática do acontecimento. Mesmo os jornais republicanos passam a reportar de forma mais favorável a política externa, ajudando a construir a sua reputação de líder forte sensível, em pleno controlo das situações.
E como as notícias são o «primeiro rascunho da história» (“first rough draft of history”), nas palavras de Phil Graham, nem sempre o que prevalece na memória é o retrato mais fiel do que verdadeiramente acontece, mas antes uma narrativa simplificada.
Se o «mito» do Presidente que salva o mundo da guerra nuclear prevalece inatacável durante décadas, bem como a versão simplificada dos acontecimentos, repetida e ensinada e com contornos de lenda, a cobertura de outros episódios de conflito internacional indiciam que pouco muda na forma como os media norte-americanos reportam a atuação da Casa Branca em matéria de política externa.
A interrogação dos media
«O poder da imprensa é levantar questões, fazer perguntas, estimular o debate e a discussão pública. O que não acontece em 1962», aponta James McCartney, antigo correspondente em Washington, num texto para a American Journalism Review, acrescentando que atualmente, e da leitura de vários documentos com as duas versões da história, se considera que a base instalada pelos soviéticos tem como propósito defender Cuba, o que altera de forma radical a narrativa conhecida.
E se esta é a versão ocidental da narrativa, no lado soviético, do outro lado da cortina de ferro, a imprensa é totalmente controlada pelo Estado, pelo que as notícias veiculadas não primam pela clareza e objetividade, apresentando várias omissões e deturpações. As primeiras notícias do bloqueio são dadas pelo Pravda, jornal oficial do regime, sem qualquer referência à existência de bases de mísseis em Cuba. A ameaça vinha dos Estados Unidos e o alvo era Cuba, que os soviéticos tinham de defender.
Duas potências mundiais, duas histórias diferentes
Duas potências em confronto, duas versões diferentes da mesma história. E a conclusão de que a cobertura mediática serve para veicular, sem questionar, as narrativas oficiais.
Num artigo longo e pormenorizado sobre a crise dos mísseis soviéticos em Cuba da revista Atlantic é dito que Kennedy é tão responsável como Nikita Khrutchev – aos mísseis americanos na Turquia apontados para Moscovo, os soviéticos respondem com mísseis apontados à América.
Mas a revista põe a balança a favor de Moscovo: os americanos retiram os mísseis da Turquia e prometem não derrubar Castro.
A verdade é que o tempo e a história corrompem a aura criada em torno de John F. Kennedy. Poem a nu a construção de perceções. Lapidam o mito tornando-o novamente num homem.
O artigo da revista Atlantic é perentório: o spin dos acontecimentos e a interpretação da Casa Branca dos eventos são perpassados por uma imprensa crédula e instrumentalizada, que ajuda na criação e projeção da liderança do presidente norte-americano, num um momento, aliás, de quebra de popularidade. Documentos oficiais revelam que a narrativa oficial norte-americana foi uma construção de quem esteve envolvido no processo. O ajuste na memória coletiva demorará certamente mais tempo.