Eduardo Fernandes (Esculápio)

No final do século XIX, Esculápio é uma estrela em ascensão. Começara o trilho para a fama como jornalista n’A Pátria em 1891, onde ganha o respeito dos republicanos pela sua insolência poética. Após o encerramento desta publicação, o jornal A Vanguarda acolhe o repórter.

Eduardo Fernandes

Assinava os seus textos jornalísticos sob o pseudónimo «Esculápio». Nasceu em 1870 em pleno coração lisboeta, na Bica. Foi pai de vários filhos, entre os quais outro Eduardo Fernandes, que seria advogado e ator de cinema. Dos seus papéis proeminentes fariam parte o vilão Quicas d’A Canção de Lisboa e o protagonista em Maria Papoila

 

 

A revista ABC apresentou-o ao público português, juntamente com nomes como o de Reinaldo Ferreira («O Repórter X»), Guedes de Amorim e tantos outros.

No final do século XIX, Esculápio era uma estrela em ascensão. Começara o trilho para a fama como jornalista n’A Pátria em 1891, onde ganhou o respeito dos republicanos pela sua insolência poética. Após o encerramento desta publicação, o jornal A Vanguarda acolhe o jovem repórter. Neste jornal, Esculápio veria a sua primeira grande vitória jornalística.

 

O crime de Monsanto

A 1 de fevereiro de 1893, chega a Lisboa a terrível notícia de um assassínio brutal na serra de Monsanto. A vítima é uma mulher desconhecida.

Insaciável aventureiro, Esculápio corre a Monsanto nessa mesma noite, apontando os testemunhos de quem encontrou o corpo mutilado, e reproduz a notícia na edição seguinte do jornal. O resto da madrugada é passado a foliar em Lisboa. Nas primeiras horas da manhã, Esculápio convence o seu colega do Diário de Notícias, Albino Sarmento, a visitar o local do crime.

 

 

Intrigado, o repórter dirige-se ao pátio onde tinha visto o avental. Ao fazer perguntas aos moradores, descobre que há quatro dias que ninguém sabe de Maria dos Anjos, a mulher que ali vive com um soldado da guarda municipal.

Esculápio pede então aos interrogados que se dirijam à polícia para identificar o cadáver. A identidade de Maria dos Anjos confirma-se. Thomaz Ribeiro, marido da vítima, acaba por ser preso após uma confissão de culpa.

Por mero acaso, Esculápio desvenda o homicídio de Monsanto, e tudo devido a um avental esvoaçante. O jovem jornalista ganhava, assim, a respeitabilidade dos repórteres numa época difícil para a imprensa republicana.

 

 

Um caso sério de violação de correspondência

O jornal A Vanguarda viveria anos prósperos. Contudo, os salários foram reduzidos com a promessa de compensação mais tarde. A reposição salarial não chegou a acontecer, e Esculápio acabou por aceitar uma oferta para integrar a redação d’O Século.

No início do século XX, Silva Graça, diretor d’O Século, era, inquestionavelmente, o barão da imprensa portuguesa. O jornal lucrava imenso com as vendas, tornando-se a publicação de referência da época.

Em agosto de 1902, enquanto Silva Graça passava férias nas termas de Vichy, 12 redatores (entre os quais Esculápio) criticaram veemente a deriva ideológica do periódico. Fez-se a edição do jornal, com a certeza que, no regresso do diretor, os 12 seriam despedidos.

Em três semanas, o grupo instala-se na esquina da Travessa da Queimada com a Rua da Atalaia, e funda O Diário. Na primeira publicação, a recém-formada redação faz pouco de Silva Graça, que protagoniza o cabeçalho da primeira página.

 

 

A guerra com Silva Graça não terminaria aqui. Com menos de um mês de vida, Lisboa já respeita e reconhece o grupo de jornalistas que integra esta redação. Quanto ao periódico O Século, restava-lhe jogar com as armas que tinha, ameaçando e pressionando os distribuidores d’O Diário.

 

 

Na altura, as  publicações de Lisboa partilhavam uma caixa postal na tabacaria Mónaco. Ali se deixavam sugestões, bilhetes, ofensas e, por vezes, informações úteis. À lei da época, a violação da correspondência era proibida. E Esculápio andava desconfiado. Nas últimas histórias de crimes, o seu rival d’O Século chegou ao mesmo tempo que ele.

 

Esculápio, com uma vasta rede de informadores, decide fazer uma experiência. Juntamente com a sua fonte mais importante, Gamboa, inventa um acontecimento e escreve uma nota, informando no sobrescrito que se trata de uma informação exclusiva para O Diário.

No dia seguinte, ao lerem a edição de 4 de julho de 1903 d’O Século, o acontecimento por eles inventado estava relatado, com uma avalanche de pormenores sórdidos.

No dia 5, O Diário escreve um desmentido, expondo que todos os detalhes publicados pelo jornal O Século não são verdadeiros.

Silva Graça vê-se, assim, encurralado. Ao atacar O Diário, seria admitir que violou o correio postal do rival. Prepara então uma curta nota a explicar que o jornal recebera aquela informação como sendo verdadeira, o que, afinal, não se confirmara.

 

 

No dia 6 de julho, Esculápio prepara a pena e os 12 renegados d’O Século têm a sua vingança. Na edição do dia, era publicado o seguinte texto:

«O Século sofreu o justo castigo dos seus processos inconfessáveis e da deslealdade que usa para com todos os jornais de Lisboa sem excepção. Abriu uma carta que não lhe era dirigida, pois que era individualmente sobrescriptada, com a nota de particular, para um informador d’O Diário».

O diretor d’O Século recebia a lição de uma vida que, inexplicavelmente, acabaria por compensar o grande Esculápio mais tarde.

 

A reviravolta

Em 1906 O Diário encerra e Esculápio regressa ao jornal O Século, ainda sob a direção de Silva Graça. A sua fama transcende-o, e Esculápio acaba por se especializar como repórter de crime. Sendo escritor nato, Eduardo Fernandes assinaria ainda numerosas peças de teatro.

O seu estilo inconfundivelmente brincalhão e satírico ainda lhe valeu um processo de difamação no verão de 1892. Nas suas gazetilhas, que o tornaram célebre, Esculápio escreveu um verso sobre o conde Burnay (empresário e político português de muito relevo no século XIX). O conde não apreciou a piada, e acabou por processar o repórter.

No seu livro de memórias, o jornalista conta os seus episódios mais caricatos durante a sua carreira. Contudo, as suas memórias não foram o seu único livro publicado. Em 1900, Eduardo Fernandes reuniu algumas das suas gazetilhas e publicou a obra Dois Annos de Troça.

 

 

Em conjunto com Cruz Moreira «Caracoles», o famoso tom jocoso de Esculápio faria relançar a revista humorística Os Ridículos, em 1905.

 

 

Aproveitando a efervescência política que precedeu a implantação da República, conseguiram  que a publicação se desenvolvesse bastante, através da crítica política e social e pela sátira aos acontecimentos dominantes da época. Caracterizado pela excentricidade, a indumentária de Eduardo Fernandes não passava despercebida: de chapéu largo de feltro preto e lavalièreao pescoço, apresentava-se nas ruas de Lisboa com uma bengala. 

O aclamado jornalista do final do século XIX e início do século XX morreria em 1945. Atrás de si deixaria uma vida repleta de episódios hilariantes, preenchida com uma carreira pouco convencional.