JOSÉ TENGARRINHA
(1932 – 2018)
Só as grandes personalidades são capazes de passar pelas “forças diabólicas” que povoam a experiência política sem queimarem a alma. A afirmação é de Viriato Soromenho Marques a propósito de Tengarrinha, cuja vida foi marcada pelo valor da liberdade e por duas paixões: a “generosa dádiva cívica em favor do debate” público e uma dedicação ao conhecimento.
Uma homenagem a Tengarrinha, com os depoimentos de Bárbara Tengarrinha, Carla Baptista e João Esteves.
José Manuel Marques do Carmo Tengarrinha nasceu em Portimão, em 1962, tendo começado desde muito cedo “a escrever o seu destino como cidadão”: aos 15 anos, já era militante do MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática), cuja comissão central chegou a integrar.
Foi jornalista, investigador, professor, político e sempre, segundo Viriato Soromenho Marques, um insaciável curioso intelectual “pelos temas, pelas pessoas, pelo mundo”. Colocou a sua vida – acrescenta aquele investigador e professor catedrático de Filosofia – ao serviço da liberdade que corajosamente perdeu, por várias vezes, nos calabouços da polícia política (PIDE). Foi um dos presos políticos libertados da Prisão de Caxias na noite de 27 de Abril de 1974, na sequência da “Revolução dos Cravos”.
ENTRE A OPOSIÇÃO AO ESTADO NOVO E O JORNALISMO
José Manuel Tengarrinha iniciou a carreira de jornalista, em 1953, no República, tendo, cinco anos depois (1958), terminado a licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Integrou ainda as redações das revistas Vértice e Seara Nova e do jornal Diário Ilustrado onde, entre 1959 e 1962, ocupou o cargo de chefe-de-redação e de onde foi compulsivamente afastado na sequência da sua prisão, na Cadeia de Aljube, pela PIDE. Já antes, aquando do cumprimento do serviço militar obrigatório, havia estado detido, cerca de um ano, na Companhia Disciplinar de Penamacor.
Impedido de exercer a profissão de jornalista e de lecionar, teve de recorrer, para sobreviver, às traduções.
Apesar das perseguições, da tortura e da prisão, nunca, no entanto, abandonou a luta política. Sempre nas fileiras da oposição democrática ao Estado Novo, participou em todos os combates eleitorais realizados entre 1958 e 1974, tendo sido candidato à Assembleia Nacional, pelo círculo de Lisboa, nas eleições realizadas por ocasião do denominado Marcelismo (1969 e 1973), através da CDE – Comissão Democrática Eleitoral (mais tarde MDP/CDE), movimento de que foi um dos fundadores e seu principal dirigente.
Foi “figura de destaque” na organização do Congresso Republicano de 1969 e no III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro, em Abril de 1973.
Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, com o objetivo de realizar estudos sobre o Portugal Oitocentista, foi distinguido, em 1962, com o Prémio da Associação dos Homens de Letras do Porto, pelo seu trabalho sobre Rodrigues Sampaio, (1806-1882), jornalista e político (liberal) que foi deputado, ministro e chefe do Governo.
Com Joel Serrão, José-Augusto França e Vitorino Nemésio e o patrocínio da Gulbenkian, fundou, em 1969, o Centro de Estudos do Século XIX do Grémio Literário, que dirigiu e manteve ativo até 1974, através, designadamente, da realização de inúmeras atividades de investigação e ações de promoção cultural, como colóquios, cursos, debates e conferências.
Uma das “maiores alegrias” da sua vida terá, no entanto, acontecido poucos dias depois de 25 de Abril, quando, como recorda Soromenho Marques, em plenário de estudantes, foi decidido “acolher” o seu nome como docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Aí se doutorou, em 1993, com uma tese sobre “os movimentos populares agrários em Portugal”, entre os anos de 1750 e 1825, regeu “cadeiras centrais” para a compreensão da História contemporânea portuguesa, designadamente no domínio socioeconómico, e foi professor catedrático.
Com o MDP/CDE constituído em partido político, foi eleito deputado à Constituinte (1975-76) e, entre 1977 e 1987, à Assembleia da República, através da coligação FEPU (Frente Eleitoral Povo Unido), que, criada pele PCP, MDP/CDE e Frente Socialista Popular, deu origem, em Abril de 1978, à APU (Aliança Povo Unido), posteriormente (1987) dissolvida, por divergências registadas entre os partidos fundadores (PCP, MDP e “Os Verdes”).
DA POLÍTICA ATIVA PARA A VIDA ACADÉMICA
Em 1987, abandonou a vida política ativa (que não, no entanto, a cívica), passando a dedicar-se de modo especial à sua vocação académica, com uma obra, grandemente alargada, a ganhar merecida repercussão, designadamente a nível de Ciências Sociais e História. A ponto de, segundo José Esteves, ser absolutamente “fundamental” e “urgente” proceder a um estudo aprofundado dos seus trabalhos, designadamente na área da historiografia, onde, de acordo com a opinião daquele historiador, se está realmente perante uma investigação “metódica” e “pioneira” sobre os movimentos operários do século XIX.
Em causa, concretamente, um olhar sobre as lutas sociais, os conflitos rurais e urbanos, em estudos que resultam numa simbiose entre a investigação do historiador e a sua consciência cívica. Como o próprio afirmou, em entrevista concedida a Fernando Assis Pacheco, para a RTP, o seu interesse pelo século XIX foi uma consequência da sua preocupação pelo Presente, do desejo de tentar entender problemas da sociedade portuguesa através da análise de um Passado próximo.
De citar, entre os inúmeros trabalhos publicados, Estudos de História Contemporânea de Portugal; Movimentos populares agrários em Portugal – 1725-1825 (tese de doutoramento); História do Governo Civil de Lisboa; E o povo onde está? Política popular, contra-revolução e reforma em Portugal e José Estêvão: o homem e a obra. No Brasil, publicou A historiografia portuguesa, hoje; Historiografia luso-portuguesa contemporânea e História de Portugal. Inúmeras separatas por si assinadas foram editadas por universidades italianas, francesas, holandesas e espanholas, além das portuguesas.
A estes títulos, haverá que acrescentar vários outros anteriormente publicados, como, por exemplo, A novela e o leitor português. Estudo de sociologia da leitura; A Revolução de 1820. Manuel Fernandes Tomás; Diário da Guerra Civil.Sá da Bandeira ou Combates pela Democracia.
Em relação ao Jornalismo, onde, como sublinha a professora Bárbara Tengarrinha (sua companheira nos últimos 35 anos de vida), ele foi realmente “pioneiro”, merece referência destacada a Nova História da imprensa portuguesa – das origens a 1865 (1003 páginas) que, publicada em 2013, refere e analisa “todos os periódicos e séries publicados em Portugal e em língua portuguesa no estrangeiro”, desde os tempos dos “papéis informativos” (os primórdios da Gazeta de 1641) até ao início da “época industrial”, com o nascimento do Diário de Notícias, em 1865.
Já muito antes, no entanto, ou seja, em 1985 (com reedição revista e aumentada em 1989), Tengarrinha havia publicado a História da imprensa periódica portuguesa, a que se seguiu, em 1993, Da liberdade mitificada à liberdade subvertida e, em 2006, Imprensa e opinião pública em Portugal, onde reuniu “trabalhos inéditos e outros publicados em revistas e atas de congressos em Portugal e no estrangeiro”.
Com a vantagem de, na opinião de Carla Baptista, professora que foi jornalista, além de saber contar uma história (“tinha o lastro dos velhos jornalistas”), ter deixado, através da sua “experiência de vida”, uma “marca indelével sobre o modo como estudou o Jornalismo”.
Além de ter sido professor visitante na Universidade de São Paulo (Brasil); de ter dirigido e/ou lecionado em cursos de doutoramento e mestrado em Portugal e em inúmeras universidade estrangeiras, como Florença, Bolonha, Paris VII, Autónoma de Barcelona, Carlos III de Madrid, Nantes, Sevilha, Bilbau ou a Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais de Paris, entre outras, José Tengarrinha integrou ainda conselhos de redação e editoriais de revistas editadas em Portugal, Espanha e Brasil. Dirigiu os Cursos Internacionais de Verão, anualmente realizados em Cascais; foi um dos fundadores do Centro Internacional para a Conservação do Património (CICOP – Portugal), com sede mundial em Tenerife (Espanha), de que foi coordenador para a Europa e presidiu ao Instituto de Cultura e Estudos Sociais.
Em 2021, o Centro de História da Universidade de Lisboa promoveu a edição de um livro póstumo, onde, sob o título de Lutas laborais e formação da classe operária portuguesa” (disponível online), o Autor – escreve, no prefácio, o sociólogo e investigador Manuel Carvalho da Silva – nos “apresenta o extraordinário percurso das lutas laborais, da sua organização, das formas como foi feito e do resultado obtido até à aproximação do século XX”. Trata-se, sintetiza Bárbara Tengarrinha, do “último grande contributo de José Tengarrinha para a historiografia portuguesa”.