Vera Lagoa

De Maria Armanda Falcão a Vera Lagoa; das câmaras da RTP às «bisbilhotices» do Diário Popular e aos editoriais d’O Diabo. Uma carreira abrangente e diversificada, alicerçada numa voz crítica e num estilo irreverente

Um «Diabo de saias»

«Não gosto de si. O senhor é muito feio!». Assim terminava o editorial «O senhor Gomes de Chaves», publicado n’O Diabo, em fevereiro de 1976. O texto era assinado pela diretora da publicação, Vera Lagoa.

Menos de duas semanas depois, o semanário era suspenso. A ordem chegava do Conselho da Revolução, incomodado pelo tom rebelde do jornal e pela irreverência da sua diretora. Depois de dois números, O Diabo via a sua atividade interrompida.

O semanário, fundado originalmente em 1895, tinha renascido sob a orientação de Vera Lagoa. A primeira edição chegara às bancas a 10 de fevereiro de 1976.

«Muita água correu sob as pontes até que fosse permitido a uma mulher como eu, sem passado literário (apenas com um passado de luta), dirigir um jornal de combate e de cultura. Para o combate, aqui estou eu. Para a cultura (além do combate, também, evidentemente) aqui está quem neste jornal escreve».

Na mesma edição, a escritora e poetisa Natália Correia assinava o artigo «Um Diabo de saias».

«Ei-lo [O Diabo] agora ressurgido à luz da liberdade, com saias na direção. E que saias! Vera Lagoa, que encabeça o novo avatar de O Diaboé, sem dúvida, uma personalidade controversa. São-no os homens que se arremessam para a linha de fogo. Quanto mais uma mulher!».

Vera Lagoa já sabia como era estar na linha de fogo. A suspensão d’O Diabonão era a primeira advertência do Conselho da Revolução feita à jornalista.

Em setembro de 1975, o órgão aprovara por unanimidade a sua detenção por «ação ofensiva e contrarrevolucionária na pessoa do Presidente da República».Em causa estava o artigo de opinião «Sr. Presidente, perdi-lhe o respeito», publicado no semanário Tempo, em que a jornalista chamava «rolha» ao general Costa Gomes.

 

Vera Lagoa tornou-se a primeira jornalista a ser processada por um Presidente da República. A intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho evitou que a decisão do Conselho da Revolução fosse avante.

As altercações com o regime não silenciavam a voz crítica da jornalista.

Inconformada, com a suspensão d’O Diabo, Vera Lagoa e a sua equipa fundaram um novo semanário: O Sol. Após a publicação do primeiro número, foi colocada uma bomba à porta do gabinete da diretora.

«O Sol não se apaga com petardos», escreveu a jornalista, no editorial da segunda edição.

A publicação foi fugaz; ODiabo regressou no início de 1977, praticamente um ano depois da suspensão.

A jornalista também fundou o semanário O Crime.

Uma mulher de causas

Voz interventiva da sociedade portuguesa, Vera Lagoa encabeçou as primeiras reações públicas contra os comunistas, já após o 25 de abril e a sua separação de José Manuel Tengarrinha, fundador do MDP/CDE.

Um fulgor que, embora em lados diferentes do espetro político, já tinha demonstrado antes da revolução, ao combater os fascistas.

Mulher de causas, participou, em 1958, na candidatura à Presidência da República do «General Sem Medo», Humberto Delgado.

As suas memórias e trabalhos jornalísticos deram origem a diversas obras.

O escritor e cartoonista José Vilhena, que confessava ter em Vera Lagoa um dos seus alvos preferenciais, chegou a compilar um livro com respostas dos visados às revelações bombásticas da jornalista.

De Maria Armanda a Vera

Antes de surgir Vera Lagoa, já existia Maria Armanda Pires Falcão. Nascida em Moçambique, a 25 de dezembro de 1917, Maria Armanda Falcão tornou-se a primeira locutora da televisão portuguesa, na RTP.

Durante os anos 50, trabalhava como secretária na empresa e acabou por conquistar lugar à frente das câmaras. Apenas lhe foi imposta uma condição: teria de pintar o cabelo.

Já loura, tornou-se «o primeiro sorriso da RTP». É também da sua responsabilidade a criação do concurso Miss Portugal.

O seu contrato não foi renovado por ter «demasiada personalidade».

Vera Lagoa nasceu durante um almoço com Luís de Sttau Monteiro: Vera, por querer ser verdadeira; Lagoa, inspirada pelo vinho branco que bebiam à refeição. Maria Armanda era Vera, Vera era Maria Armanda; de formas diferentes, ambas marcaram o jornalismo português.

«Bisbilhotices» e crónicas da vida social

Nos anos 60, Vera Lagoa tornou-se cronista do Diário Popular. A sua irreverente coluna «Bisbilhotices» causou sensação e tornou-a numa das badaladas repórteres portuguesas do século XX.

Considerada pioneira da área, Vera Lagoa ficou reconhecida pela sua crónica de costumes, desenvolvida num estilo único e irreverente.

«Ainda lá estaria, ainda estaria naquele salão, a ver cerca de cem pessoas dançarem e cantarem sem que o dono da casa parecesse incomodado com isso, se não tivesse de telefonar esta crónica. E isto é o melhor que, às 7 da manhã, sou capaz de escrever».

Num tempo em que o jornalismo era asfixiado pela censura, a cronista disfarçava de banalidades a sua crítica social: ia além de um mero relato dos eventos sociais, das intrigas, da moda e da etiqueta e ousava apontar o dedo à sociedade da época.

Vera Lagoa – ou Maria Armanda Falcão – faleceu a 19 de agosto de 1996.

Uma dupla identidade que intrigou a própria jornalista. «A Maria Armanda era uma pessoa com muito mais valor do que a Vera Lagoa. Tinha mais energias, mais coisas porque lutar. A Vera Lagoa afasta muita gente que a Maria Armanda gostaria de ver junto de si».

Uma pioneira televisiva e uma voz crítica do seu tempo, Vera Lagoa foi uma uma figura incontornável da crónica portuguesa.