A guerra que Portugal quis esquecer
«O desastre do exército português em Moçambique na Primeira Guerra Mundial» é a obra de Manuel Carvalho que recorda episódios entretanto esquecidos.
Um manuscrito perdido dentro de uma arca inspira Manuel Carvalho à investigação da campanha portuguesa em Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial. As reportagens que escreveu para o Público foram distinguidas com o Prémio Gazeta.
A investigação dá origem à obra «A Guerra que Portugal quis esquecer», dedicada à «guerra sem rosto» travada pelos portugueses em Moçambique, recordando um episódio da nossa história que permanecia na obscuridade.
Entre os episódios relatados, destaque para a efémera conquista do mais valioso troféu daquela campanha africana: o forte de Nevala.
Partem as tropas
«Partida das expedições à África», anuncia a manchete do Diário de Notícias de 12 de setembro de 1914. «O entusiasmo popular atinge o delírio – Sucedem-se as aclamações aos expedicionários – A caminho do dever».
Em setembro de 1914, partiam para África as primeiras tropas portuguesas, com o objetivo de defender as colónias nacionais.
Entre 1914 e 1918, foram enviados para Moçambique mais de 20 mil soldados.
Em África, o exército português sofreria a mais pesada derrota desde Alcácer Quibir.
Contudo, durante, um mês, os portugueses foram senhores do forte de Nevala, a mais valiosa conquista da campanha nacional no continente africano.
É montado o cerco
«A coluna de operações do flanco esquerdo, depois de ter […] batido o inimigo e ocupado pontos da defesa avançada do Nowala, tomou esta posição».
A 30 de outubro de 1916, «as vitórias portuguesas em África» estavam em destaque na capa d’A Capital.
Os soldados portugueses tinham atravessado o rio Rovuma, batido a resistência alemã no seu próprio território e subido à Serra de Nevala.
O forte era conquistado às forças germânicas e tornava-se o maior troféu das tropas nacionais em território africano.
Um mês. Um mês foi quanto durou a posse da fortificação.
Os alemães queriam recuperar o forte que os portugueses haviam conquistado.
As tropas germânicas aproximavam-se cada vez mais; a 22 de novembro, estavam nas imediações da fortificação de Nevala.
«O círculo fechou-se num anel de fogo, crepitante, raivoso, feroz. Enfim, estávamos cercados», afirmou o Alferes António de Cértima.
Os alemães repetiam a estratégia usada pelos portugueses e atacavam a ribeira de Nevala, o ponto onde era possível aceder a água potável.
O combate durou 12 horas.
Os portugueses viram-se obrigados a recuar, por falta de munições.
O certo estava montado; os germânicos não arredavam pé.
O oficial Ferreira Gil avisou o Governo de que «os alemães têm concentrado forças contra Nevala tendo cortado comunicações» e pediu a divulgação da data do embarque da expedição de 1917, «com o fim de reanimar tropas». De Lisboa não chegou resposta.
A ambição nacional de conquistar território germânico começava a cair por terra.
Em Palma, o general Ferreira Gil pedia voluntários para uma «Coluna de Socorro a Nevala», mas a missão era travada pelos alemães.
Dentro do perímetro cercado, as tropas portuguesas tentavam resistir.
«A infantaria dormia, comia, vivia todas as suas horas alapada nas trincheiras, sem poder quase deitar a cabeça, um braço, de fora», recordou o Alferes Carlos Selvagem.
A 27 de novembro, era tomada a decisão: os sobreviventes iam partir no dia seguinte.
A fuga
Feridos, esfomeados e sedentos, os portugueses desceram a escarpa sinuosa e avançaram pela selva, escondidos pela escuridão.
As armas e os mantimentos que não podiam ser carregados foram destruídos.
«Saltando à escarpa da vertente a coluna de retirada por aí se esgueirou, na treva da noite, esfarrapando-se nos galhos agudos do mato, rasgando as carnes, as mãos e as faces, caminhando agachada, sem norte, sem bússola, ao acaso, em demanda das areias claras do rio», escreveu o Alferes.
A fuga de Nevala, uma medida tão desesperada quanto iluminada, foi considerada uma façanha do exército português.
A operação, decidida apenas no dia anterior e levada a cabo por tropas exaustas, acabou por ficar na história como uma das mais bem preparadas e executadas missões nacionais na Primeira Guerra Mundial.
Na manhã seguinte, os alemães bombardeiam o forte e são surpreendidos pela ausência de reação.
Quando se apercebem da fuga, lançam-se em perseguição às tropas portuguesas.
Com algumas horas de vantagem sobre o inimigo, os sobreviventes da fuga ao cerco de Nevala começavam a chegar a Nangade, com os alemães no seu encalço.
A partir da outra margem do rio Rovuma, os germânicos dispararam com tal precisão que o oficial Azambuja Martins começou a suspeitar que «o adversário estava perto» e que «o combate iria ser travado em desfavoráveis circunstâncias para nós, pelo esgotamento das nossas forças e pela ação de surpresa que sofríamos».
O pânico instalava-se; muitos portugueses tentavam fugir para a base de Alto da Serra.
Perante os ataques, os sobreviventes da coluna de Nevala encetavam nova fuga, desta vez para Matchemba.
Aí permaneceram cinco dias, até que novos rumores da aproximação germânica levaram os portugueses a partir, uns para Pundanhar, a única base que restava antes de Palma, outros para Mocímboa da Praia.
Um exército esgotado
A ameaça alemã continuava a pairar sobre os portugueses.
«Na lividez da manhã, Palma acorda mais lívida na ansiedade do que acontecerá esse dia, de como findará esse dia», registou o Alferes Carlos Selvagem.
O que as tropas nacionais ignoravam era que, do lado alemão, o desgaste da guerra também já se tornava evidente.
Depois de destruírem Nangade e lançarem o pânico nos postos portugueses, os alemães espalharam-se em pequenos destacamentos pelo território luso, com a intenção de restabelecer, de forma simbólica, a soberania alemã no triângulo ocupado em abril.
«Perseguir o inimigo em território português era impossível naquela circunstância», dado o «estado de cansaço das tropas que estavam em operações desde há 14 dias», escreveu o oficial germânico Max Loof.
Em Lisboa, as operações de Moçambique eram acompanhadas com otimismo.
Um sentimento visível na nota da Presidência do Ministério, publicada no Diário do Governoa 17 de janeiro de 1917.
«Em breve, as nossas tropas recuperarão todo o terreno que tiveram de abandonar por um incidente de campanha, e farão novos avanços, batendo completamente os alemães no seu próprio território, e hasteando ali, definitivamente vitoriosa, a bandeira de Portugal».
Da imprensa de referência ficavam afastadas as dificuldades encontradas em África: o tom era patriótico e a censura militar excluía da cobertura qualquer dado estratégico ou que pudesse abalar a moral das tropas.
Em Moçambique, a imagem era bem diferente.
«Frangalhos de sete a oito mil homens, mil contos de material de guerra abandonado ao inimigo, a certeza melancólica de decisivos reveses», descreveu o Alferes Carlos Selvagem.
Durante a Primeira Guerra Mundial, morreram mais combatentes portugueses na colónia portuguesa do que na Flandres.
Nevala seria a prova da distância entre as aspirações coloniais do Governo e a realidade do campo de batalha; uma distância superior aos quilómetros que separavam Lisboa e Moçambique.