Parem as Máquinas!
«Parem as Máquinas!», de Gonçalo Pereira Rosa, passa em revista algumas das mais extraordinárias, insólitas e rocambolescas aventuras da história do Jornalismo português.
Obra única, «Parem as Máquinas!» é uma homenagem viva e divertida aos jornais e jornalistas portugueses. Através dos episódios narrados por Gonçalo Pereira Rosa são recordados repórteres como Ferreira de Castro, Acúrcio Pereira, Reinaldo Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Eduardo Gageiro, Norberto Lopes e Urbano Carrasco. Este último, grande repórter do Diário Popular protagoniza, em 1957, um dos casos mais singulares casos do nosso Jornalismo.
O vulcão, a bandeira e o repórter
O vermelho e o verde contrastam com as nuvens; a bandeira portuguesa ondeia nos céus. O mastro está nas mãos de um homem: Urbano Carrasco.
«O enviado-especial do Diário Popular foi a primeira pessoa a desembarcar na ilha do vulcão onde implantou a bandeira portuguesa».
O desenho de Stuart Carvalhais, publicado a 13 de outubro de 1957 na capa do vespertino de Lisboa, ilustra um dos episódios mais peculiares do Jornalismo português.
Em setembro de 1957, um vulcão mostrou atividade perto do Capelo, na ilha do Faial, Açores.
À medida que a população saía… a imprensa chegava.
Os habitantes eram evacuados do cenário de destruição; o mesmo cenário que atraía repórteres nacionais e estrangeiros em peso.
Urbano Carrasco, grande repórter do Diário Popular, foi um dos jornalistas destacados.
Nasce uma ideia
No início do mês de outubro, a cobertura de Urbano Carrasco fazia manchetes no vespertino lisboeta.
A partir da Horta, o repórter fazia telefonemas diários para a redação com informações sobre a situação nos Açores, a tempo do fecho da edição diária.
«Tudo está agora negro como se tivesse sido pintado à pistola com o mais negro alcatrão. [...] Sinto-me incapaz de explicar em toda a sua trágica grandeza esta súbita mutação», escreveu.
O jornalista batizava a nova formação vulcânica como «Ilha do Desespero».
A informação variava: se, no dia 9, o registo era otimista, a 10 de outubro referia-se que as explosões estavam a aumentar de intensidade.
A missão científica organizou uma visita à ilha.
Os jornalistas não queriam faltar, apesar de perigos como «os vapores de água expelidos a mais de cem graus que seriam capazes de cozer um ser humano, os jatos laterais do vulcão e a emissão de gases».
Enquanto esperava por condições de navegabilidade, Carrasco tomou conhecimento da história do ilhéu Sabrina, também ele formado a partir de uma erupção vulcânica, em 1811.
A atividade vulcânica captara a atenção dos tripulantes de um navio da frota imperial, que se aproximaram da ilha e fincaram no solo a Union Jack, reivindicando o território.
Apesar do ilhéu ter submergido menos de um ano depois, o episódio deixou uma profunda ferida no orgulho nacional.
Uma ideia começava a ganhar forma na mente de Urbano Carrasco.
Rumo à «Ilha do Desespero»
O projeto teve ainda mais fulgor depois de o repórter ter navegado com os colegas perto da ilha recém-formada e de se ter deparado com um cenário impressionante.
O jornalista sentia-se na obrigação de documentar aquilo que testemunhara.
O objetivo era claro: pisar a «Ilha do Desespero».
«Constituía para mim uma verdadeira obsessão e fiz, desde a primeira hora, tudo quanto era possível para conseguir um barco».
A sua busca por voluntários revelou-se infrutífera. Só Carlos Tudela, operador de câmara da RTP, alinhou na aventura.
O barco Quo Vadis partiu, com os dois jornalistas a bordo, enfrentando uma «terrível chuva de cinzas e de lama», que estragou a máquina de Carrasco e danificou o motor do barco.
«Roguei a Deus e praguejei. Remávamos lentamente quando o outro barco – também já com o motor avariado – passou por nós. Mas naquele barco iam quatro pessoas, uma das quais foi pescador durante dez anos. Sabiam remar...».
A bordo ia o faialense Carlos Peixoto, que acreditava que o enviado da revista Paris-Matchseguia no Quo Vadis.
Receando nova humilhação às mãos dos estrangeiros, à semelhança do sucedera com o ilhéu Sabrina, pusera-se a caminho, com José Ilharco, do Diário de Notícias, e dois habitantes locais.
O Quo Vadis chegou primeiro.
As ondas atiraram os dois aventureiros para a ilha. Na mão levavam uma bandeira.
Urbano Carrasco correu para um ponto alto, onde as águas não chegavam, e ali fincou o símbolo português.
«Chamem-me ridículo, se quiserem, mas, embora sabendo que não cometi heroísmo algum, confesso a minha emoção quando me esforçava por enterrar na areia negra do vulcão a bandeira de Portugal», relatou.
A aventura não tinha terminado. A embarcação dos repórteres estava encalhada.
Manuel Duarte, um dos açorianos que viajara no barco rival, auxiliou os jornalistas.
«Foi graças a ele que conseguimos abandonar a ilha, onde a nossa audácia – e o desconhecimento total das coisas de marinharia – nos lançara», escreveu Carrasco.
Outros jornalistas tinham seguido as suas pisadas, mas haviam ficado presos na lama a várias centenas de metros do vulcão, sem visibilidade para captar imagens.
«Por capricho do destino, talvez só o repórter francês do Paris-Match, instalado no farol, tenha obtido boas imagens desta aventura que encerra para mim as reportagens sobre o vulcão dos Açores», concluiu Carrasco.
De aventura a lenda
A notícia da sua proeza já chegara a terra.
«A ilha já não é só negra. A ilha recebeu as suas primeiras cores: verde e vermelho», anunciou o jornalista João Afonso, ao microfone do Rádio Clube de Angra.
O Diário Popular atribuiu um caráter lendário ao feito do seu repórter.
Sem imagens, coube a Stuart Carvalhais recriar – com alguma liberdade criativa – a aventura.
A primeira página tornou-se uma das mais célebres da história da publicação.
Mas «a contemplação do impressionante espetáculo tornou-se banal», escreveu Carrasco.
Aos poucos, o vulcão deixava de ser notícia.
No dia 18 de outubro, o repórter abandonou a cobertura jornalística do caso.
Para trás ficava o símbolo da sua aventura.
«Talvez a ilha tenha duração efémera, mas se morrer, durante a sua vida junto à terra portuguesa, terá sobre ela a nossa gloriosa bandeira», declarou o jornalista.
A lenda sobreviveu ao objeto.
Na noite de 29 para 30 de outubro, a «Ilha do Desespero» foi engolida pelo mar.
Com ela levou as cores nacionais que, por alguns dias, haviam transformado o repórter em notícia.