De soldados para soldados
Além de fazerem manchetes pelas suas conquistas no campo de batalha, os combatentes sentem, cedo, a necessidade de criar a sua própria Imprensa, para capturar de forma fiel a realidade da guerra. Ou para motivar.
A 7 de novembro de 1861, em plena Guerra Civil Americana, um batalhão da União acampou na praticamente deserta cidade de Bloomfield, no Missouri.
Ao explorar a cidade, os soldados descobriram a redação abandonada do Bloomfield Herald e decidiram publicar o seu próprio jornal.
A 9 de novembro, nascia o The Stars and Stripes.
Testemunha dos maiores conflitos do século XX, é publicado ininterruptamente desde 1942 na Europa e desde 1945 no Pacífico, constituindo a mais antiga e reconhecida publicação de guerra.
A longevidade do Stars and Stripes não foi seguida pela maioria dos periódicos de guerra.
“Have you ever sat in a trench in the middle of a battle and corrected proofs? Try it.” [«Alguma vez se sentou nas trincheiras, a meio de uma batalha, e corrigiu provas? Tente»].
O conselho é do Capitão F. J. Roberts, editor do The Wipers Times, o mais popular jornal de trincheiras inglês durante a Primeira Guerra Mundial.
Conta a lenda que o oficial e o Tenente Jack Pearson descobriram uma máquina de impressão nas ruínas de Ypres, na Flandres.
Em fevereiro de 1916, nascia o The Wipers Times, assim batizado devido à incapacidade dos soldados britânicos de pronunciar «Ypres».
O jornal foi publicado até dezembro de 1918, com a exceção de períodos onde a batalha se intensificava.
Além das dificuldades técnicas, a produção também era marcada pela ameaça contínua de ataques.
Segundo o Capitão Roberts, o jornal era “produced when the air was generally full of shells... Often one had to stop writing an article in order to 'stand to.” [«produzido quando o ar estava cheio de bombardeamentos … Muitas vezes alguém tinha de parar de escrever um artigo para se preparar para a batalha»].
Longe de ser um porta-voz da máquina de propaganda britânica, a publicação reunia uma combinação única de humor negro e subversivo, piadas privadas e sátira à vida nas trincheiras.
De histórias sobre a comida, a ração de rum e as ratazanas, passando por críticas aos jornalistas da frente doméstica e até à própria censura, o The Wipers Times apresentava a guerra vista da perspetiva de quem a combatia.
Uma caraterística comum às publicações que se multiplicaram por toda a Europa, durante a Primeira Guerra Mundial.
A imprensa das trincheiras
Os jornais produzidos por soldados surgiram, em parte, como reação à imprensa publicada nas terras-natais das tropas.
O jornalismo oficial parecia-lhes, muitas vezes, desapropriado, uma vez que a imprensa controlada e autocensurada tendia a produzir relatos patrióticos, otimistas e confiantes, que, muitas vezes, faziam uma representação errada da guerra para os leitores da frente doméstica.
O jornalismo de trincheiras procurava manter a moral e desenvolver uma cultura militar, ao criar meios através dos quais os soldados podiam socializar, partilhar conquistas e desabafar frustrações com a vida no campo de batalha.
Este tipo de imprensa também celebrizava os feitos individuais e da unidade e promovia rivalidades saudáveis em eventos desportivos, debates, música e outras competições menos convencionais.
De simples folhas escritas a lápis e copiadas com papel de carbono, a publicações de várias páginas reproduzidas em máquinas de impressão, sabe-se que foram publicados mais de uma centena de jornais britânicos e mais de quatrocentas publicações francesas.
Também os portugueses davam cartas na imprensa de trincheiras.
A 1 de janeiro de 1926, a Liga dos Combatentes dava início à publicação da revista A Guerra.
«A “Liga dos Combatentes da grande Guerra” iniciando hoje a publicação desta revista, tem por fim tornar mais conhecidos os seus intuitos e dar uma mais larga expansão à sua atividade», lia-se, no editorial, assinado pelo Major Ribeiro de Carvalho.
A revista era um órgão de comunicação da Liga; «os que nela trabalham, fazem-no absolutamente de graça e até com alguns sacrifícios materiais…».
A publicação autoproclamava-se «na Imprensa Portuguesa o único porta-voz dos direitos de todos aqueles que juntos se bateram, engrandecendo a Pátria e honrando a Raça».
Testemunhos dos conflitos
A Primeira Guerra Mundial chegou ao fim em 1918, mas o espírito empreendedor dos soldados-jornalistas não terminava com ela.
A imprensa produzida e dedicada aos combatentes foi reavivada durante a Segunda Guerra Mundial.
Egbert White, que trabalhara no Stars and Stripes, propôs a criação de uma nova publicação: a revista Yank, the Army Weekly.
Esta foi publicada em 1942 e tornou-se um sucesso imediato.
Dos cartoons humorísticos às reportagens de guerra, passando pelas imagens das pin ups americanas, a revista correu mundo.
Os números eram editados na cidade de Nova Iorque e enviados para as várias bases, do Mediterrâneo ao Pacífico Ocidental, onde os editores podiam acrescentar artigos sobre a realidade local.
Com uma circulação mundial de mais de 2,6 milhões de cópias, a revista tornou-se a mais lida na história militar dos Estados Unidos.
A paz ditou o seu fim; cessou publicação em dezembro de 1945.
15 anos depois, os Estados Unidos envolviam-se num dos mais problemáticos – e polémicos – conflitos da sua História: a Guerra do Vietname.
O espírito de oposição à guerra viajava pelas unidades de combate através da imprensa.
O movimento GI, uma iniciativa antiguerra, utilizou os jornais como forma de disseminar clandestinamente pelas bases ideias de oposição ao conflito, estimando-se que mais de 300 títulos tenham sido publicados durante a guerra.
O envolvimento de soldados no ativo na produção e distribuição deste tipo de imprensa significava ação disciplinar.
Vietnam GI foi uma das mais influentes publicações da guerra do Vietname.
A primeira edição do jornal foi publicada no final dos anos 60, pelo veterano de guerra Jeff Sharlet.
O jovem alistara-se no início da década, mas regressara aos Estados Unidos desiludido com o envolvimento do país naquilo que considerava ser uma guerra civil vietnamita.
Juntamente com outros veteranos de guerra e objetores de consciência, criou a publicação, com o objetivo de dar voz à oposição que grassava entre as forças norte-americana.
Nos primeiros meses de publicação, o Vietnam GI atingiu uma tiragem de 30 mil exemplares.
Com a morte de Sharlet, em 1969, o jornal acabou por fechar portas.
A partir do Ultramar
Em Portugal, a Guerra Colonial abria novos horizontes a este tipo de imprensa, que passava a fazer parte do quotidiano de milhares de soldados.
Em janeiro de 1960, saiu o primeiro Jornal do Exército, com uma tiragem de 20 mil exemplares.
Nos primeiros anos de guerra, o jornal publicou uma série de «Conselhos aos Soldados no Ultramar», que juntavam humor e crítica para motivar os soldados e prepará-los para os desafios que iriam vivenciar.
A publicação contava com o talento de militares no terreno, como Vicente da Silva e José Rui, entre outros que, mais tarde tiveram sucesso como desenhadores de cartoons.
As páginas humorísticas, que caricaturavam as missões das tropas e as situações vividas nas várias fases da comissão, ajudavam os soldados a integrar-se na realidade da guerra.
Do século XIX à atualidade, a história do jornalismo cruza-se com a história da guerra em múltiplas ocasiões.
As publicações destinadas a soldados profissionalizaram-se e alcançaram outros formatos; hoje, muitas são produzidas por uma redação composta por jornalistas e publicadas em plataformas como a Internet.
Uma imprensa militar distante dos primeiros jornais de batalha, criados pelos próprios soldados.
Mais do que apenas informar, cimentar o espírito de camaradagem e de missão comum era um dos principais objetivos destas publicações.
Um tipo de jornalismo feito por soldados, para soldados.