Guerra do Golfo

Em direto na TV

Chega tecnologia. Numa época em que os avanços tecnológicos eram mais conservadores, a resportagem mantinha as ferramentais tradicionais. Ninguém suspeitava que toda a máquina mediática mudasse drasticamente, especialmente na forma como se fazem as grandes coberturas jornalísticas de guerras.

A guerra do Golfo ficou assim conhecida devido ao envolvimento dos países que se estendem em volta do Golfo Pérsico.

Os problemas começaram quando Saddam Hussein, então presidente do Iraque, decidiu anexar o Kuwait. Para além de questões territoriais, os iraquianos acusavam o Kuwait de exceder as quotas de produção petrolífera, e eram grandes devedores do país, devido à guerra entre o Iraque e o Irão.

 

 

A 2 de agosto de 1990, o Iraque invade o Kuwait. A Arábia Saudita, o maior exportador e produtor de petróleo do mundo, viu-se ameaçada com a ação do Iraque, e os Estados Unidos, para salvaguardar a sua fonte primordial de petróleo, pressionam as Nações Unidas (ONU) para intervirem no conflito.

O efeito CNN

A 29 de novembro, o Conselho de Segurança da ONU autorizou o uso da força por parte dos EUA e exigiu a retirada do Iraque até 15 de janeiro de 1991. James Baker, secretário de Estado norte-americano, emitiu o derradeiro ultimato ao Iraque utilizando a CNN, e não o encarregado de Negócios Estrangeiros americano em Bagdad.

Criava-se, assim, o efeito CNN. Os governos e os jornais já não guardavam a informação pública; o poder havia sido transferido para os media, nomeadamente através da televisão.

O efeito CNN e o fator Arnett tornaram-se características essenciais das guerras pós-modernas: os governos e os militares tiveram de se adaptar à capacidade dos jornalistas em mostrar o outro lado – o lado inimigo – da guerra.

O consenso internacional sobre a gravidade da invasão por parte de Saddam levou à criação da maior aliança militar reunida desde a Segunda Guerra Mundial. Os EUA obtiveram o apoio do Médio Oriente, através da Arábia Saudita, do Egito, da Síria e do Omã. No Ocidente, através de Portugal, Espanha, Itália e, principalmente, do Reino Unido.

 

O nascer do direto

A primeira ofensiva dos EUA, denominada Operação Tempestade no Deserto, teve lugar a 17 de janeiro de 1991, com o bombardeamento aéreo de Bagdad. Na noite em que as hostilidades começaram, havia em Bagdad duas televisões com telefone por satélite: a CNN e a BBC.

John Simpson, enviado da BBC, abandonou o hotel à procura de imagens, fiel aos hábitos tradicionais de cobertura de guerra. Quando regressou, deu conta que a sua própria estação colocava no ar o relato em direto da CNN. O jornalista não percebera que as coisas haviam mudado, e que na altura era o direto que passara a ser essencial.

A guerra do Golfo via nascer o relato em direto da guerra, com a descrição dos eventos por parte de três jornalistas da CNN, a partir da janela do seu quarto, pelo telefone por satélite. O mundo inteiro assistia, espantado, ao decorrer dos eventos, lado a lado com os líderes das maiores potências mundiais. As regras de cobertura jornalística mudavam e não havia ponto de retorno.

A primeira guerra realmente pós-moderna foi a Guerra do Golfo, com a acelerada globalização mediática que se fez sentir devido à televisão.

 

 

Embora vários jornalistas se encontrassem em Bagdad em janeiro de 1991, a CNN era o único canal que possuía os meios técnicos para transmitir com o exterior. Tal vantagem valeu à estação o furo jornalístico dos primeiros bombardeamentos à capital iraquiana, permitindo-lhe sobressair face às três outras grandes estações televisivas norte-americanas (ABC, CBS e NBC).

A CNN ganhou muita popularidade pela cobertura intensa que fez do conflito. Ao ser o único canal da altura que transmitia notícias 24 horas por dia, a CNN já tinha a experiência que lhes permitiu possuir todo o equipamento necessário para seguir os eventos em Bagdad.

 

 

Além disso, quando o governo norte-americano avisou os jornalistas do bombardeamento e que não conseguiam assegurar a sua segurança, Bernie Shaw, John Holliman e Peter Arnett decidiram ficar na capital. A Guerra do Golfo catapultou para a fama a estação televisiva norte-americana CNN.

 

 

A decisão de ficarem em Bagdad, todavia, teve repercussões negativas. A CNN foi inundada de protestos de telespetadores furiosos, chegando a acusá-los de traição. O porta-voz da Casa Branca, Marlin Fitzwater, chegou mesmo a afirmar que a estação se transformara num «canal da desinformação iraquiana». Arnett ficou apelidado de “Baghdad Pete”, mas a CNN não vacilou e manteve a decisão de cobrir a guerra pelo lado iraquiano.

 

Uma guerra inatingida de sangue

Após o primeiro bombardeamento dos EUA, Paulo Camacho, enviado do Expresso, e Artur Queirós, do Jornal de Notícias, contradiziam-se nas suas crónicas sobre o primeiro bombardeamento feito a Bagdad pelos EUA.

«Aparentemente, o Ministério da Defesa não tinha sido atingido. Acertaram num prédio de habitação, uma ‘ninharia’ que é da responsabilidade dos sofisticados aparelhos que equipam os aviões de combate», relatava Artur Queirós, no Jornal de Notícias, a 19 de janeiro de 1991.

«No centro da capital iraquiana, os únicos edifícios que vi atingidos eram o Ministério da Defesa e uma fábrica de produtos químicos», contrariava Paulo Camacho, no Expresso, no mesmo dia.

No entanto, os relatos de Peter Arnett, da CNN, apoiavam o testemunho de Paulo Camacho. Também Alfonso Rojo, enviado do jornal espanhol El Mundo, afirmava igualmente que os aviões americanos «têm uma pontaria incrível», referindo ainda a «precisão diabólica» dos pilotos.

Novas tecnologias como satélites, câmaras de alta tecnologia e equipamento de visão noturna marcaram o ponto de viragem para um novo tipo de cobertura mediática. Continuava a notar-se, porém, grande dependência da informação e das imagens divulgadas pelas forças militares. O Pentágono divulgou um documento de diretrizes chamado “Annex Foxtrot”, onde estabelecia que apenas jornalistas escolhidos podiam visitar a linha da frente ou entrevistar os soldados, sendo sempre acompanhados pelos oficiais.

Além de autorização prévia, os jornalistas tinham de se sujeitar à censura, de forma a proteger a divulgação de informação sensível. Estas diretrizes tinham base na experiência militar da Guerra do Vietname, na qual a opinião pública desfavorável cresceu nos Estados Unidos.

 

 

A cobertura mediática da guerra era censurada e «limpa» de mortos e sangue. Em contraste, eram publicadas imagens tecnologicamente avançadas. A guerra do Golfo foi uma guerra de simulacro. Os telespetadores pensavam ver a guerra em direto, mas não a viam realmente, pois os jornalistas não tinham acesso ao campo de batalha.

 

A Guerra do Golfo, a nível da imagem, foi o conflito do simulacro. Os vídeos das câmaras incorporadas nos mísseis e as imagens em direto de jornalistas com máscaras antigás deram a ilusão aos telespetadores de que viam a guerra quando, na verdade, os jornalistas não tinham acesso direto ao campo de batalha.

Durante o bombardeamento do bunker de Al-Amiriya, as imagens do massacre captadas pelas equipas ocidentais de televisão presentes em Bagdad foram desprovidas das cenas mais repugnantes, devido à preocupação de se proteger o público. Ainda assim, a divulgação das imagens provocou a revolta na Inglaterra, resultando em milhares de espetadores a telefonarem para as televisões a contestarem a decisão de difundir as imagens. O The Daily Mail chegou mesmo a acusar a BBC de ser a “Baghdad Broadcasting Corporation”.

Registaram-se igualmente restrições quanto ao teor gráfico das imagens. A fotografia de Ken Jarecke, de um soldado iraquiano carbonizado, foi banida nos Estados Unidos. Mas na Europa a fotografia era divulgada.

 

O fator Arnett

Duas semanas depois do início da guerra, Peter Arnett conseguiu entrevistar Saddam Hussein.

 

 

A permanência de Peter Arnett em Bagdad veio abalar gravemente as conceções tradicionais de guerra. O repórter chegou a desafiar, em direto, as declarações dos chefes militares americanos. O acontecimento mais célebre foi o bombardeamento do bunker de Al-Amiriya, que matou mais de 300 civis iraquianos.

Em Washington, os responsáveis militares tiveram problemas em lidar com os efeitos colaterais das reportagens de Arnett. Colin Powell, o chefe de estado-maior, revelou que a cobertura da CNN sobre aquele acontecimento específico influenciou a decisão de avançar com a guerra terrestre e, dessa forma, apressar o desfecho do conflito. O fator Arnett estava criado. Os políticos nunca mais poderiam conduzir uma guerra da mesma maneira devido à influência do repórter em Bagdad.

De acordo com Jamie Shea, porta-voz da NATO na guerra da desintegração da Jugoslávia, na ausência de mecanismos de restrição ou imposição, a solução passa por um vigoroso news management, ou seja, uma gestão informativa que conduza, subtilmente, os jornalistas à direção pretendida pela máquina militar.

O fator Arnett constituiu-se como uma bênção para as populações dos países em ataque. Uma vez que os civis não entravam nas contas dos militares, os resultados mostravam-se desastrosos: carnificinas que jamais seriam noticiadas.

Jornalistas «às escuras»

Como retaliação, o Iraque bombardeia Tel Aviv, em Israel. O objetivo de Saddam Hussein era provocar uma resposta militar em Israel, de modo a forçar os países árabes a saírem da aliança com os EUA.

 

 

Duarte Valente, enviado da Rádio Atlântico e da Rádio Nova, era o único correspondente português em Tel Aviv. A alguns quilómetros de distância, os jornalistas do Público, do Diário de Notícias, do Expresso, da TSF e da RTP encontravam-se em Jerusalém.

João Almeida, da TSF, entrava em direto: «Eu peço desculpa por eu estar a falar com máscara, mas é apenas por uma questão de segurança. Espero que me estejam a ouvir (…) Eu tenho a máscara colocada, como de resto toda a gente aqui em Jerusalém tem a máscara colocada, porque está confirmado, mais do que confirmado, [que] de facto isto trata-se de um ataque. São dois [os] mísseis que já atingiram neste momento Tel Aviv». A informação veio a provar-se errada. Apenas um míssil atingira Tel Aviv.

Os erros multiplicaram-se. Manuel Neto, do Diário de Notícias, reportava uma notícia que também ela estava longe da verdade: «O que se temia, aconteceu, às primeiras horas da madrugada de hoje, ogivas contendo armas químicas caíram sobre Tel Aviv». Mas não foi lançada nenhuma arma química. No entanto, essa foi uma notícia que chegou a correr durante a noite, sendo transmitida pela CNN e chegando à Casa Branca através dos seus canais próprios.

A censura israelita impedia que fosse divulgado o sítio exato do impacto. Ao creditarem-se nos centros de imprensa israelitas, todos os jornalistas tiveram de assinar um documento onde se comprometiam a submeter os seus trabalhos ao visionamento prévio pelo Gabinete de Censura das Forças de Defesa de Israel.

 

Reportagens às escondidas

A 20 de fevereiro, o presidente George Bush lançou um ultimato: se o Iraque não retirasse as suas forças do Kuwait no prazo de três dias, seria lançada uma ofensiva terrestre. Mário Rui de Carvalho, um operador de câmara português da CBS, acompanhou os militares nesta ofensiva.

 

 

Os correspondentes portugueses receberam ordens para avançarem para Dahran, uma cidade no norte da Arábia Saudita que os aliados escolheram para quartel-general das suas forças. Em Dahran, as forças armadas americanas controlavam os jornalistas através de pools: apenas alguns jornalistas eram autorizados a acompanhar os militares, que escolhiam o tema que ia ser coberto e o dia correspondente. As imagens seriam posteriormente partilhadas entre todos os jornalistas.

Os repórteres indignaram-se e começaram a disfarçar-se de militares para obter imagens junto das linhas da frente. Entre estes jornalistas, apelidados de unilaterais, constavam Artur Albarran, da RTP, e Adelino Gomes, do Público.A notícia que a ofensiva terrestre havia começado era divulgada na rádio, e Adelino Gomes escrevia: «Quase não chega a fazer-se silêncio na tenda, como se a notícia não passasse da mera repetição do que já se sabia de ciência certa».

A investida terrestre da aliança conseguiu finalmente entrar no Kuwait. A imagem de Artur Albarran, num direto às escondidas à entrada do país, tornar-se-ia muito famosa em Portugal através da RTP. «Estamos a acompanhar a coluna das forças multinacionais árabes e acabámos de entrar no Kuwait. Ultrapassámos agora a famosa barreira de areia que os sauditas tinham construído ao longo da sua linha de fronteira com o Kuwait. Este comboio é o maior movimento militar que alguma vez vi na vida».

Entretanto, Cáceres Monteiro, enviado de O Jornal (publicação gerida apenas por jornalistas e um projeto assumidamente de esquerda) e da TSF, e Adelino Gomes, do Público, acompanhavam a coluna militar egípcia e kuwaitiana.

«Passamos por tendas iraquianas, ‘bunkers’ abandonados, e vemos capacetes, granadas, latas, restos de uniformes, de mochilas. À nossa volta, é ensurdecedor o barulho de minas a rebentar e, na linha da superfície do deserto, sobem rolos de fumo espesso» – Cáceres Monteiro.

«É uma festa, desde o primeiro minuto, a longa e lenta marcha iniciada há 48 horas. Soldados empoleiram-se na torre dos tanques, levantam os dedos em sinal de vitória» – Adelino Gomes, Público.

Os repórteres portugueses encontrar-se-iam com soldados iraquianos na sua jornada. A 1 de março de 1991, O Jornal fazia manchete sobre este encontro: «IRAQUIANOS RENDEM-SE A REPÓRTER DE O JORNAL». Cáceres Monteiro acrescentava: «Ao aproximarmo-nos conseguimos ver, por entre a água e a lama do para-brisas do jipe, um pano branco na ponta de um pau. Esfomeado, cansado por dias de caminho, por longas horas de pavor, queria render-se». O jornalista de O Jornal e da TSF rapidamente percebeu que o Exército iraquiano «não passava de uns desgraçados que tinham sido para ali atirados como carne para canhão».

Vitória!

A 27 de fevereiro, Saddam Hussein ordenava a retirada das tropas iraquianas do Kuwait, e o presidente dos EUA declarava o território libertado. “Crianças e velhos e mulheres de ‘abaya’ preta correm das casas até à berma, com bandeiras, com gritos, desenhando com os dedos o sinal de vitória”, escreve Adelino Gomes.

 

 

David Borges, enviado da TSF, relatava em direto para Lisboa: «Eu peço perdão pela emoção que eventualmente possa transparecer da minha voz, e peço perdão também pela eventualidade de não poder ser tão claro quanto desejaria, porque estou em plena Cidade do Kuwait, num ambiente de perfeita loucura coletiva, na festa dos kuwaitianos pela sua libertação».

 

 

A 27 de fevereiro, a emissão da RTP era interrompida para dar destaque à comunicação do presidente Bush, anunciando o fim da guerra.

 

 

Artur Albarran entra em direto para o Telejornal, a 28 de fevereiro de 1991, no segundo dia de libertação do Kuwait e o primeiro do fim da guerra: «Anoiteceu em Kuwait City ao meio-dia, porque o fumo dos poços de petróleo que ardem no Kuwait (…) cobriram a cidade logo ao princípio da tarde, e desde essa altura que é tão de noite como agora, absolutamente negro, não se vê um palmo à frente».

A 1 de março, as equipas da RTP e da TSF eram os únicos meios portugueses no local. Um direto de Artur Albarran a lado de um corpo a sair pela porta semiaberta de um carro, num confronto em Mutla, levantou polémica. Depois de imagens totalmente limpas de sangue e mortos, esta transmitia, pela primeira vez, a noção de que este não era um conflito limpo. «A estrada do Kuwait para Baçorá é uma desolação. É um cemitério de tanques ou veículos blindados, ou de carros atacados pelo ar, como este, e cadáveres pelo chão».

No hospital Mubarak, os enviados da TSF e da RTP descreviam os horrores dos cadáveres espalhados. No entanto, os repórteres portugueses não mencionaram que os corpos não excediam as duas dezenas. Antes da ofensiva terrestre, os relatos sobre as atrocidades cometidas pelas tropas iraquianas no Kuwait proliferavam.

A notícia de que soldados iraquianos tiraram bebés das incubadoras e levaram as máquinas para o Iraque, deixando as crianças a morrer, correu mundo. De facto, o testemunho mais perturbador de tal história foi de uma rapariga kuwaitiana de 15 anos, chamada Nayirah. Mais tarde, veio-se a descobrir que a rapariga era filha do embaixador dos EUA no Kuwait. A história tinha sido fabricada pela firma de relações públicas Hill and Knowlton.