Guerra fria acaba a quente
A década de 90 é marcada pelo fim da União Soviética. A bandeira deste império voa pela última vez em 1991. Contudo, logo depois, a questão nacionalista impôe lutas sem precedentes entre territórios irmãos.
A Queda do Muro de Berlim
Em 1989, a queda do muro de Berlim marcava o fim da Guerra Fria e, mais tarde, o início do fim da União Soviética.
Dois anos depois, a 21 de agosto de 1991, os olhos do mundo estavam voltados para a União Soviética. «Moscovo, meio-dia, dez horas portuguesas de hoje, Boris Ieltsin desfralda e agita ao vento a bandeira tricolor da velha Rússia. É a vitória reconfirmada sobre o golpe. A multidão rejubila. Vira-se uma página na História do país». As palavras são de Carlos Fino, correspondente da RTP, que assistiu de perto à tentativa falhada de golpe de Estado que abalou a União Soviética.
O Golpe de estado e a resistência (russa)
O golpe de Estado já se tinha iniciado a 19 de agosto. Foi anunciado que o presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, estava doente e tinha sido afastado do seu posto, quando na verdade estava em férias na Crimeia.
No entanto, os criadores do golpe de Estado depararam-se com a resistência promovida pelo presidente da Rússia, Boris Ieltsin, que se deslocou à Câmara Branca (parlamento russo) na tentativa de deter os golpistas.
Carlos Fino estava in locono preciso momento em que Boris Ieltsin subiu a um tanque apelando à ordem e à democracia.
«A mobilização popular contra o golpe é muito grande, e a consciência desta força ajuda a diminuir o medo. Para esta noite, ainda se espera um eventual ataque das tropas fiéis à Junta que tomou o poder, e os tanques de Ieltsin têm por isso que estar preparados para toda a eventualidade».
Nessa noite, ocorreram vários confrontos que provocaram mortos e feridos. Horas depois, a tensão foi diminuindo. Tornava-se claro que não haveria assalto ao parlamento por parte dos golpistas. Ao nascer do sol, dez carros blindados atravessaram a cidade e colocaram-se ao lado de Ieltsin. Carlos Fino registava o momento:
«Vemos aqui os tanques passarem, encaminhando-se para as imediações da sede do governo da Rússia, não para o atacarem, mas pelo contrário, para o defenderem das tropas fiéis às autoridades centrais».
A 23 de dezembro, é publicada na Time uma entrevista exclusiva com o presidente da União Soviética.
A 25 de dezembro de 1991, Mikhail Gorbachev comunica ao país o seu pedido de demissão.
Na mesma noite, a CNN transmite uma entrevista com o líder demissionário. As suas declarações espalharam-se pelo mundo.
“Tonight the red flag of the Kremlin was lowered for the last time.” [Esta noite a bandeira vermelha do Kremlin foi baixada pela última vez], noticiava a ITN.
A dissolução da União Soviética
Este acontecimento veio abrir a caixa-de-pandora. Muitos países que até aí estavam sob o domínio da URSS viram várias questões nacionalistas e étnicas rebentarem. O primeiro conflito a revelar-se foi o de Nagorno-Karabakh. A região, que já havia pertencido ao Azerbaijão em 1923 e à Arménia em 1988, volta a ficar no centro da disputa quando a Arménia e o Azerbaijão conseguiram a independência da União Soviética.
Em 1992, a European Broadcasting Union lança uma operação para cobrir o conflito, que se encontrava no seu auge. A RTP adere à ação, e Carlos Fino é o enviado especial. [Esta é uma imagem do inferno. Algures na fronteira do Nagorno-Karabakh, um lança-mísseis de quarenta canos, manejado por soldados azeris, despeja uma salva de fogo e aço sobre a vizinha povoação arménia de Askeran]
Carlos Fino experienciava os horrores da guerra, e obtinha provas de que existiam massacres na região. A 14 de março abre a sua crónica no Telejornal com imagens chocantes dos resquícios de uma ofensiva arménia a Khodjali. [As imagens brutais do massacre de Khodjali, no passado dia 26 de fevereiro, quando um número indeterminado de famílias azeris em fuga foi dizimado por guerrilheiros arménios, chocaram o Azerbaijão e mudaram a perceção Ocidental da guerra]
Os nacionalismos
O conflito entre a Arménia, o Azerbaijão e o Nagorno-Karabakh viria a estender-se até 1994, quando um cessar-fogo foi assinado entre representantes dos países. Nagorno-Karabakh tornou-se uma república independente de facto, enquanto permanece de jureparte do Azerbaijão. Todavia, ainda hoje conversações de paz são mantidas entre as duas nações para decidir o futuro do território.
Jim Clancy, pivô do canal norte-americano CNN, conta que estava em Baku, no Azerbaijão, quando os populares o reconheceram.
They recognized us. (…) Ten thousand people turned around and they gave a rousing applause for CNN. Just for who we were. Because we were able to go beyond the borders, to leap across them, with satellite news coverage and let them know what was happening in other countries.” [Eles reconheceram-nos. (…) Dez mil pessoas viraram-se e deram um enorme aplauso à CNN. Apenas por quem éramos. Porque nós éramos capazes de ir para além das fronteiras, saltávamo-las, com cobertura mediática através de satélite e mostrávamos-lhes o que estava a acontecer nos outros países]
O fim da União Soviética originou também a separação da Moldávia. A república, que pertencia à vizinha Roménia, ganhou independência da URSS, levantando problemas para as minorias russas que para ali emigraram. Em 1990, a população russa da margem esquerda do rio Dniestre declarou a sua independência em relação à Moldávia, criando a República do Dniestre. Esta separação não seria reconhecida pela Moldávia nem pela comunidade internacional.
O conflito agravou-se em 1992, e a rede das televisões públicas europeias instalou-se na capital moldava de Kishinev, novamente numa operação montada pela European Broadcasting Union. Mais uma vez, Carlos Fino e o operador de câmara Vadim Meshki juntaram-se à TVE e cruzaram as linhas russas «à caça» de imagens.
«Situação de pânico, esta tarde, em Gueska, uma pequena aldeia na margem direita do Dniestre. No tiroteio que se seguiu, o material de guerra que levavam a bordo explodiu, e os quatro jovens dos destacamentos especiais da polícia moldova morreram queimados».
Centenas morreram neste conflito. A violência acabaria quando as tropas russas intervieram, mas a independência da República de Dniestre nunca seria reconhecida.
Os conflitos entre a Geórgia e a Abcásia são igualmente um marco importante na história da desagregação da União Soviética. Zviad Gamsakhurdia foi eleito em 1991 para a presidência da Geórgia, após um referendo que legitimou a independência do país. Mas depressa as suas ações lhe valeram vários inimigos, que retaliaram no final desse mesmo ano. Eduard Shevardnadze aceita o convite para governar a Geórgia.
Todavia, Gamsakhurdia, depois de dez dias de exílio, regressa ao seu país e reinicia a guerra, com o apoio de uma aliança criada com o governo da Abcásia (região autónoma pertencente à Geórgia). Tal aliança entre Gamsakhurdia e os abcases não foi aceite pelo governo da Geórgia, e o conflito rebenta em 1992, em plena capital da Abcácia, Sukhumi.
«O aeroporto de Sukhumi, ele já alvo de ataques por parte dos abcases, é palco todos os dias de cenas de caos, com milhares de pessoas a invadir a pista sempre que chega um novo avião de Tbilissi, e tentando depois, na confusão, obter um lugar a bordo», descreve Carlos Fino no Telejornal da RTP a 17 de outubro de 1992.
Um ano depois, em 1993, Carlos Fino voltava para o centro da guerra na Geórgia. Na localidade portuária de Poti, disputada por ambos os lados do conflito, o repórter português teve a confirmação de que as tropas russas tinham entrado nas hostilidades. Um oficial russo explicava a Carlos Fino: «Agora, as coisas são mais claras, a Rússia entrou em conflito com Gamsakhurdia. Oficialmente, já nos disseram que ele é inimigo das tropas russas».
A última crónica da guerra na Geórgia, a 25 de outubro de 1993, fecha com um soldado sorridente. «Numa pausa dos combates, um simples soldado georgiano teve mesmo à vontade suficiente para vir falar à reportagem da RTP e dizer que de política nada sabe, mas gostaria era de mandar um abraço ao Eusébio».
O Caso da Chechénia
A Chechénia é o caso mais famoso de luta separatista na Rússia desde o colapso da União Soviética. Em 1991, a Chechénia declara-se independente. Em 1994, o presidente da Rússia, Boris Ieltsin, ordena o envio de tropas para restaurar a soberania russa na região.
A 11 de dezembro de 1994, as tropas invadem a capital chechena, Grozny. No entanto, a milícia russa vir-se-ia mal preparada para a ofensiva contra os chechenos, que retaliaram e conseguiram afastar os russos.
Carlos Fino, num direto feito no meio da praça da capital, proferia as seguintes palavras: «Não há nervosismo nem tensão. Pelo contrário, aqui em Grozny viemos encontrar uma grande calma, baseada na determinação geral de defender a soberania da república».
A guerrilha entre chechenos e russos iria prolongar-se até agosto de 1996. As imagens emitidas no Telejornal da RTP eram de destruição, sofrimento e morte.
Paulo Moura, enviado do jornal Público, chegava à Chechénia a junho de 1995. Na sua primeira crónica, Moura escreve:
«A primeira impressão é o pó. Não é um pó normal, de terra. É um pó mais fino, cósmico. É um fumo que parece desprender-se das paredes negras, crivadas de balas, cheias de rombos, de fendas. (…) Das casas sem telhado, nem fachada, das fachadas sozinhas, sem casa. Das pontes destruídas. Dos edifícios de que só resta um esqueleto negro».
As tropas russas abandonaram a Chechénia no final de 1996. A guerra fizera 90.000 mortos. Mais tarde, em 1999, o primeiro-ministro russo Valdimir Putin organiza nova ofensiva contra os separatistas chechenos, e o conflito no país voltaria a reacender-se.
A transição que parece ter fim
Foi apenas em 1993 que o período de transição da era pós-soviética chegou ao fim. As reformas de Boris Ieltsin entraram em conflito com o poder legislativo, e o presidente decidiu dissolver o parlamento, numa medida considerada inconstitucional.
Em setembro, o parlamento destitui Boris Ieltsin do seu cargo e nomeia Aleksandr Rutskoi como presidente.
Rapidamente a tensão cresce nas ruas. Vários protestos populares contra o presidente e contra a deterioração das condições de vida deflagram nas ruas de Moscovo, enquanto os deputados comunistas se barricam dentro da Casa Branca. Carlos Fino e José Milhazes estavam no local quando os manifestantes atacaram os cordões policiais para se aproximarem do parlamento. «Alguns polícias ainda tentaram dispersar a multidão, disparando várias vezes para o ar, mas a pressão acabou por se impor, e os manifestantes romperam o cerco ao Soviete Supremo».
A situação agravou-se quando Boris Ieltsin aciona o exército para pôr fim à crise, desencadeando centenas de mortes.
«Camiões do Exército avançaram para as paredes de vidro, os generais deram ordens a unidades suplementares de combate instaladas no parlamento para avançar, os populares desfizeram com barras de ferro as portas de alumínio do edifício», relata Carlos Fino.
O repórter da RTP assiste ao golpe final: tanques blindados começam a bombardear a Câmara Branca.
«Apesar de todo este aparato bélico e dos acontecimentos dramáticos que acabámos de presenciar, não se trata propriamente de uma guerra civil. Agora estamos perante a ação armada de um governo legítimo, destinada a desalojar um grupo ilegal que tomou conta do edifício do Soviete Supremo, e tentou tomar o poder».
O recurso à força acabou por acabar com a crise. Aleksandr Rutskoi e todos os outros parlamentares renderam-se e foram detidos. Boris Ieltsin acabava com os resquícios da URSS e instaurava uma nova configuração do regime político.