A guerra que derruba o Estado Novo
O domínio de Salazar paira como uma nuvem cinzenta sobre Portugal. Mas uma faísca de coragem é o suficiente para incendiar o movimento da liberdade e levar à Revolução de 1974. É uma guerra distante que pôs em cheque a ditadura.
15 de março de 1961. A União das Populações de Angola (UPA) dá início aos ataques às fazendas dos colonos brancos, provocando uma onda de terror e destruição no Norte de Angola. Era o despertar da guerra entre Portugal e as colónias, que reivindicavam a sua independência. Mas nada fazia prever as consequências que este conflito teria na política estabelecida em Portugal.
No continente, as notícias não se faziam chegar muito eficazmente. O Diário de Lisboa é o primeiro a referir os incidentes de 4 de fevereiro de 1961 (na capa do próprio dia), quando o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) atacou a cadeia de Luanda com o objetivo de libertar os presos, acabando por serem mortos sete polícias.
A 5 de fevereiro, O Século tornava-se o segundo diário a anunciar estes incidentes.
No entanto, os acontecimentos só começaram a ser tratados como guerra nas notícias a partir de maio desse ano. Logo aqui, a censura e a propaganda salazarista faziam-se sentir nas notícias dos jornais. De um lado, as Forças Armadas e os portugueses que viviam em Angola como heróis; do outro, os negros nativos e a comunidade internacional avessa ao colonialismo como vilões.
Sobre o massacre de 15 de março, o número de mortes nunca é referido nas páginas d’O Século. Só dois dias depois o jornal refere os acontecimentos e faz capa, com um texto de Adelino Tavares da Silva a partir de Luanda: «Mais um ataque vindo do exterior que tenta perturbar a vida de brancos e negros na pacífica terra de Angola».
Mais tarde, o mesmo jornal lança a rubrica «Século no Ultramar», que saía às quartas e sextas-feiras. Neste suplemento era reportado o que se vivia nos territórios além-mar, mas pouco era referido sobre os conflitos ultramarinos, reservando esse assunto para outras páginas do jornal.
Em vez disso, salientavam-se os «infindáveis recursos naturais de Angola, Guiné e Moçambique», a exploração agrícola das colónias, as festas de muitos portugueses e o orgulho na gestão que Portugal fazia do seu património.
Nesta altura, surgiram dois tipos de jornalistas: os que se encontravam em Angola a cobrir várias temáticas relacionadas com o país e que não esperavam o eclodir dos conflitos, tornando-se repórteres de guerra devido às circunstâncias; e os jornalistas enviados embedded no exército e destacados com a missão de cobrir a guerra.
Uma série de infortúnios
O ano de 1961 é considerado o annus horribilis de Salazar e do Estado Novo. Na mensagem de Ano Novo de 1960/1961, a primeira difundida pela televisão, o presidente Américo Tomás previu problemas para o país.
A Argélia e o Congo, países igualmente africanos e colonizados, ganhavam a sua independência de França e da Bélgica, respetivamente. Este cenário ameaçava as colónias portuguesas do Antigo Regime, que já sentia a pressão estrangeira das Nações Unidas.
Logo em janeiro, os problemas começaram a ganhar forma. Em Angola, vários trabalhadores da Cotonang protestam contra as condições de trabalho impostas pela companhia algodoeira. A manifestação é reprimida pelo exército português, mas os precedentes para o início da luta armada de libertação de Angola estavam lançados.
A 22 de janeiro, dá-se o desvio do paquete Santa Maria, comandado por Henrique Galvão. Numa tentativa de golpe militar, o navio é rebatizado Santa Liberdade, e é conseguida uma cobertura noticiosa internacional que abalaria profundamente o regime de Salazar. A fotografia da faixa que rebatiza o navio nunca seria publicada em Portugal.
Em março, a propósito dos incidentes no Norte de Angola, as Nações Unidas apelam ao governo português a introdução de medidas nas colónias. Em Luanda e em Lisboa, os portugueses reúnem-se em grandes manifestações contra a descolonização às portas da embaixada dos EUA.
Mais tarde, Lopes Alves, Ministro do Ultramar, declarava: «Não é uma política do Governo português o facto de os territórios ultramarinos serem províncias e não colónias. É uma questão de estrutura nacional, que provém do sentimento do povo, e não de uma doutrina ou determinação do Governo». As relações diplomáticas com o país aliado Estados Unidos estavam comprometidas.
Em abril, surge uma nova crise, desta vez dentro do regime. Júlio Botelho Moniz, Ministro da Defesa, cansado da resistência de Salazar à descolonização, tenta forçar a demissão do dirigente no âmbito da legalidade do regime, juntamente com Craveiro Lopes e outras personalidades ligadas ao poder. O golpe, denominado «Abrilada de 1961», acaba falhado. Com o acumular das tensões, Salazar anuncia, a 13 de abril, o início da Guerra Colonial, com a célebre frase: «Para Angola, rapidamente e em força».
As notícias que marcam os tumultos em Angola na época eram altamente manipuladas pelo regime. De caráter sensacionalista, o tom jornalístico passava ideais do Estado Novo e retratava os revoltosos como selvagens e terroristas.
No final do ano de 1961, a 18 de dezembro, as tropas da União Indiana ocupam os territórios de Goa, Damão e Diu. Salazar ordena que as tropas portuguesas lutem até à morte, mas o governador, general Vassalo e Silva, recusa-se a obedecer e opta pela rendição. O jornalista Urbano Carrasco, do Diário Popular, foi um dos enviados-especiais à zona do conflito. Acabou por ficar detido durante meses num campo de concentração para prisioneiros de guerra.
Um sistema mediático controlado
Enquanto a situação se agravava nas colónias, o tom das notícias mantinha-se subversivo ao regime. «Estamos hoje e estaremos amanhã na Índia e na África, viva o Portugal eterno!, exclamou o Sr. ministro do exército ao dirigir-se ao contingente de tropas que ontem partiu para África», é um dos títulos da capa d’O Século de 6 de maio de 1961. Além disso, a ida de soldados portugueses para a guerra continua a ser noticiada como se se tratasse de um evento social.
Já as lágrimas dos familiares que viam os seus homens partir, nunca foram referidas nos jornais; tal como o novo programa político de Kennedy, que apoiava a libertação dos povos no continente africano. A instabilidade e o medo que se viviam nos territórios devido aos assaltos e assassínios nas fazendas eram tratados como um mito, e dos relatos dos soldados pouco ou nada se dizia.
Uma guerra para além das armas
Em Angola, os vários movimentos de libertação do país organizavam-se e davam luta às tropas portuguesas. Destacaram-se a União das Populações de Angola (UPA) – mais tarde Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) – liderada por Holden Roberto, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA).
Já o nacionalismo e a luta anticolonial na Guiné e Cabo Verde estiveram profundamente ligados à figura de Amílcar Cabral, através do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). O movimento Frente de Libertação de Moçambique (FREMLINO), liderado por Eduardo Mondlane, conduziu a luta anticolonial no país.
Com o desenrolar da guerra, a propaganda tornou-se um meio eficaz de combate psicológico capaz de desorganizar os movimentos de libertação. As tropas portuguesas espalhavam cartazes realçando as pobres condições de vida e de saúde que os nativos tinham sob o controlo dos movimentos de libertação, incutindo o medo nas populações e incentivando os civis e os guerrilheiros a apresentarem-se e entregarem-se.
As tropas portuguesas conceberam ainda a publicação de um conjunto de manuais intitulados «O Exército na Guerra Subversiva», que serviam de suporte para a organização dos militares durante a guerra.
Por seu turno, os movimentos de libertação respondiam com os seus próprios cartazes de propaganda. Estes cartazes eram especialmente direcionados aos militares nativos que integravam as forças armadas portuguesas, bem como aqueles que viviam sob a sua proteção.
Os jornalistas no terreno
Em Portugal, as imagens e as notícias eram transmitidas através deste tom propagandístico. Como os jornalistas enviados para a zona de conflito acompanhavam o exército português, a informação vinha logo enviusada da própria fonte, uma vez que os próprios militares limitavam o fluxo da informação.
Além disso, os repórteres enviados foram muito poucos, todos eles selecionados cuidadosamente pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI) e pelo exército. Quanto aos jornalistas que já se encontravam nos territórios quando a guerra eclodiu inesperadamente, apesar de terem mais liberdade para reportar os factos, eram alvo da censura prévia antes das peças serem publicadas.
Os primeiros relatos da guerra, que davam conta apenas do restabelecimento da ordem pública pelas forças armadas, indicando que os povos das colónias não passavam de dissidentes e terroristas, entretanto começaram a mudar ligeiramente o tom.Apelando à luta dos portugueses contra o comunismo internacional nas colónias, a RTP já transmitia imagens de vestígios de ataques a fazendas, assim como várias colunas de militares a avançar com ações de combate.
Entre 1969 e 1974, Marcello Caetano falava à população portuguesa no programa da sua inteira responsabilidade, “Conversa em Família”. Nele explicava as políticas do Estado Novo e as tarefas que o governo estava a realizar, nomeadamente na guerra colonial.
Porém, a situação na guerra era sempre suavizada e não correspondia totalmente à verdade. O Presidente do Conselho chegou mesmo a afirmar que a imprensa internacional não apoiava os movimentos de libertação das colónias. Enquanto isso, a imprensa estrangeira relatava a verdadeira guerra colonial.
À medida que a guerra se prolongava, as mensagens de Natal e Feliz Ano Novo dos soldados portugueses, transmitidas pela RTP, ficavam na memória coletiva de Portugal.
A guerra colonial iria durar até 1974, quando se deu a Revolução dos Cravos. O Movimento das Forças Armadas (MFA) tomava Lisboa e fazia tombar o Estado Novo. A guerra foi sempre apontada como um dos fatores que contribuiu para a revolução, e a independência foi finalmente concedida às colónias portuguesas.
A guerra colonial foi o conflito militar mais longo em que Portugal se viu envolvido, desde as guerras da Restauração, entre 1640 e 1668. A guerra colonial desenrolou-se nas chamadas províncias ultramarinas de Moçambique, Guiné e Angola. Em meados de 1975, uma ponte aérea trouxe milhares de portugueses vindos das antigas colónias. Ganhariam a designação de retornados, e as imagens de caixotes e malas acumulados junto ao Padrão dos Descobrimentos ficaria para sempre gravada na memória coletiva dos portugueses.