Rumble in the Jungle
"Under an African moon in the darkness before dawn today, a bee battered a lion" [Sob a lua africana, na escuridão que antecedeu a madrugada de hoje, uma abelha golpeou um leão»]. Em 1974, o New York Times noticiava o combate entre Muhammad Ali e George Foreman, um confronto que se tornou histórico.
60 mil espetadores, mais de 100 países sintonizados, 15 rounds, 2 pugilistas e 1 título em disputa.
A 30 de outubro de 1974, as atenções de todo o mundo viravam-se para o Zaire, para assistir ao maior evento desportivo a alguma vez ter lugar no continente africano.
De um lado do ringue, o campeão de pesos-pesados George Foreman, de 25 anos, invicto há 40 confrontos.
Do outro, Muhammad Ali, de 32 anos, à procura do título que lhe fora retirado sete anos antes.
Eram 4 da manhã e o estádio de Kinshasa vibrava com o «Rumble in the Jungle».
Um combate sem precedentes
A expetativa para o duelo de titãs crescia há meses.
A iniciativa tinha partido do promotor Don King, que prometera o chorudo pagamento de cinco milhões a cada um dos pugilistas.
O ditador Mobutu Sese Seko mostrara-se disponível para receber o combate, com o objetivo de promover internacionalmente o Zaire.
«A fight between two blacks, in a black nation, organized by blacks and seen by the whole world; that is a victory for Mobutism» [«Um combate entre dois negros, numa nação negra, organizada por negros e vista por todo o mundo; é uma vitória para o Mobutismo»], lia-se, no exterior do estádio.
Mas o ditador não estava satisfeito com o soundbite criado por Don King, «From the Slave Ship to the Championship» [«Do navio de escravos para o campeonato»], provavelmente devido ao racismo inerente.
O promotor sugeriu «Rumble in the Jungle». O nome pegou.
Dois pesos-pesados
Meses antes do confronto, ainda em Nova Iorque, Don King promovia conferências de imprensa para publicitar o combate.
«So, what we’re gonna do here today is to talk about Ali, here, going to meet George Foreman and regain his crown as the heavyweight champion of the world» [«Então, o que vamos fazer aqui hoje é falar sobre Ali, aqui presente, que vai enfrentar George Foreman e reconquistar o seu título de campeão do mundo de pesos pesados»], explicou o promotor.
Ali não se ficou. «Regain? Defend my crown» [Reconquistar? Defender o meu título»].
Sete anos antes, fora-lhe retirado o título de campeão mundial de pesos-pesados e a licença para combater.
A 28 de abril de 1967, Muhammad Ali recusava-se a integrar as Forças Armadas norte-americanas, citando razões religiosas
«My conscience won’t let me go shoot my brother, or some darker people, or some poor, hungry people in the mud for big, powerful America». [«A minha consciência não me permite disparar contra o meu irmão ou pessoas mais escuras, ou pessoas pobres e famintas na lama, em nome da grande e poderosa América»].
O pugilista, nascido Cassius Clay, tinha-se convertido recentemente à Nation Of Islam e adotado o nome islâmico.
A sua recusa em participar na Guerra do Vietname resultou na sua prisão e exclusão da competição.
Por altura da sua expulsão, Muhammad Ali era um nome reconhecido no mundo do boxe.
O pugilista conquistara o Ouro nos Jogos Olímpicos de 1960 e, desde então, já derrotara alguns dos maiores nomes da modalidade a nível mundial.
Um percurso de sucesso, coroado pela conquista do título de campeão, em 1964. A sua carreira era interrompida no seu auge.
Em abril de 1968, fez capa da revista Esquire, uma imagem que lembrava a figura do mártir S. Sebastião e que se tornou num ícone do movimento antiguerra.
O seu caso foi julgado no Supremo Tribunal e, só nos anos 70, Ali foi autorizado a regressar à competição.
Por essa altura, um outro nome destacava-se na modalidade: George Foreman.
Depois de conquistar o Ouro nos Jogos Olímpicos de 1968, «Big George», como era conhecido, tinha dado início a uma jornada invicta que se prolongava há 40 combates consecutivos, com 37 knock-outs.
Em 1973, num confronto icónico com Joe Frazier, tornou-se campeão do mundo de pesos-pesados.
Um título que defenderia, no ano seguinte, no duelo com Muhammad Ali.
Depois do seu afastamento forçado, Ali queria recuperar a distinção que conquistara dez anos antes e que nunca chegara a perder em combate.
O mundo do desporto virava as suas atenções para o Zaire.
Zaire, capital do desporto
George Foreman chegava ao aeroporto africano perante uma multidão de seis mil adeptos.
Muhammad Ali chegara 24 horas antes e já conquistara a admiração do Zaire.
O pugilista passeava pelas ruas do país e convivia com a população, destacando o caráter simbólico do combate para a «emancipation of black people» [«emancipação dos negros»].
Foreman, por sua vez, permanecia no centro de treinos com o seu inseparável pastor alemão, a raça preferida das autoridades belgas, que tinham espalhado o terror pelas ruas do Zaire antes da independência do país.
Para o mundo do desporto, Foreman – campeão em título, mais jovem, mais forte – era o claro favorito.
Para a população do Zaire, Muhammad Ali já era o grande vencedor.
O combate já tinha começado mesmo antes de os pugilistas pisarem solo africano.
No seu estilo peculiar, Ali mostrava-se convicto na sua vitória.
«I’m so bad I make medicine sick, I’m so fast, man, I can run through a hurricane and don’t get wet. When George Foreman meets me, he will pay his debt. I can drown a drink of water and kill a dead tree, wait till you see Muhammad Ali» [«Sou tão mau que faço com que os medicamentos fiquem doentes, são tão rápido que posso correr num furacão sem me molhar. Quando George Foreman me enfrentar, ele vai pagar a sua dívida. Posso afogar um copo de água e matar uma árvore morta, esperem até ver Muhammad Ali»].
Foreman, há muito tido como favorito à vitória, acreditava num combate fácil frente ao antigo campeão.
«I had no doubts whatsoever that I was gonna defeat Muhammad Ali. I was not afraid […] I’m just gonna waste Muhammad Ali in two or three rounds» [«Não tinha quaisquer dúvidas de que ia derrotar o Muhammad Ali. Não tinha medo […] vou desgastar o Muhammad Ali em dois ou três rounds»] .
Mas os pugilistas ainda teriam de aguardar para provarem o seu valor no ringue.
O combate foi adiado, devido a uma lesão sofrida por Foreman durante os treinos.
A nova data: 30 de outubro, às 4 da manhã locais, para ser conveniente ao público norte-americano.
O evento seria transmitido num circuito fechado de televisão em cerca de 450 locais dos Estados Unidos e no Canadá, além de uma centena de outros países.
Alguns meios de comunicação decidiram ficar e acompanhar os preparativos para o combate.
A Sports Illustrated, sozinha, enviou sete repórteres, incluindo George Plimpton.
A acompanhar o evento desportivo, foi organizada uma iniciativa musical, que juntou nomes como James Brown, Bill Withers, and B.B. King.
O palco mediático estava montado. Faltavam os protagonistas.
A hora do combate
À hora marcada, Ali encaminhou-se para o ringue sob o olhar de 60 mil pessoas e cânticos de «Ali bome ye!». [«Ali, mata-o!»]
Do lado oposto do ringue, a equipa de Foreman lutava para fazer o robe do campeão passar pelos seus braços musculados.
A campainha soou. Ali deu o primeiro murro. Oito rounds depois, havia novo campeão.
Muhammad Ali, ciente da força e poderio físico do seu adversário, adotara a estratégia «rope-a-dope», inclinando-se sobre as cordas e protegendo-se das investidas de Foreman, fazendo com que este se cansasse.
«I hit him hard on the side, I mean, I got a good shot. And he said: ‘Is that all you got, George?’ And I remember thinking: ‘Yup, that’s about it’» [«Atingi-o com força de lado, foi um bom golpe. E ele disse: “É só isso que consegues, George? E eu lembro-me de pensar: “Sim, é basicamente isso”»], recordou George Foreman, anos mais tarde.
O vitorioso Ali foi cercado pelos jornalistas e mostrou-se crítico da imprensa que não acreditava na sua vitória.
«I told you I’m the champion of the world. All of you bow. All of my critics crawl. All of you suckers who write The Ring magazine, Boxing Illustrated ... all of you suckers bow» [Eu disse-vos que sou o campeão do mundo. Todos vocês curvem-se. Todos os meus críticos rastejem. Todos os otários que escrevem para a revista The Ring, a Boxing Illustrated… todos vocês curvem-se»].
A imprensa não ficava indiferente à sua vitória.
«How Ali fooled them all» [«Como Ali os enganou a todos»], escreveu a Sports Illustrated, sobre o triunfo inesperado do underdog.
10 anos depois, Muhammad Ali voltava a levantar o título que nunca chegara a perder no ringue.
Fora do ringue
Depois da vitória no Zaire, Ali continuou a defrontar alguns dos maiores pugilistas do mundo, protagonizando, com Joe Frazier, o famoso combate «Thrilla in Manila».
A sua carreira começou a entrar em declínio no final dos anos 70 e, em 1981, anunciou a sua retirada.
«I just have to face it: nothing lasts forever, not even Muhammad Ali» [«Tenho que admitir: nada dura para sempre, nem mesmo Muhammad Ali»].
Em 1984, foi diagnosticado com a doença de Parkinson. Uma condição debilitante, mas que não significou o seu completo afastamento da vida pública.
Foreman demorou anos a sarar as cicatrizes do «Rumble of the Jungle». Retirou-se em 1977, tornando-se ministro religioso.
Dez anos depois, voltou aos ringues.
Em 1994, com 45 anos, recuperou o título, tornando-se o campeão mundial mais velho da história do boxe.
«I exorcised the ghost, once and forever» [«Exorcizei o fantasma, de uma vez por todas»], afirmou.
O pugilista começou a dar cartas enquanto empresário, criando um império na área dos grelhadores, que o levou à capa da revista Forbes.
Os antigos rivais encontraram-se em 1997… na cerimónia dos Óscares.
A estatueta de Melhor Documentário foi atribuída a When We Were Kings, uma metragem que divulga um lado nunca antes visto do «Rumble in the Jungle».
Um combate de campeões, que colocou África nas bocas do mundo e que coroou Ali e Foreman como lendas do boxe.