O famoso Paralelo 38
A guerra entre as Coreias do Norte e do Sul dura três anos. Num misto entre guerra civil e ideológica, milhões de vidas são ceifadas num drama que envolve EUA, China e URSS. Mais de meio século depois do conflito bélico, a inimizade mantém-se: um norte e sul de costas voltadas, que na verdade é uma cisão entre Oriente e Ocidente.
Paralelo 38
O calendário marcava o dia 25 de junho de 1950 e Jack James, repórter da United Press, estava prestes a entrar na sala de imprensa da Embaixada norte-americana em Seul, capital da Coreia do Sul, quando um militar o inquiriu sobre novidades da fronteira. James nada sabia, mas a tensão entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul era bem conhecida entre os repórteres instalados em Seul. Todavia, a conversa com o militar revelou-se frutífera: o jornalista acabou, mais tarde, por perceber que tinha havido uma invasão.
Depois de duas frenéticas horas a tentar confirmar a informação, James enviou um boletim, mesmo a tempo das edições de domingo dos Estados Unidos, reportando “general attacks along the 38th parallel” [ataques gerais no paralelo 28], mas aconselhando a não usar a palavra “war” [guerra]. Por essa altura, nem o Governo norte-americano nem as Nações Unidas tinham sido informadas do ataque. Em Nova Iorque, a notícia era recebida com cautela, pois já antes tinham existido falsos alarmes sobre a Coreia.
A Associated Press utilizou a expressão “we are checking reports” [estamos a verificar informações], por forma a proteger a sua reputação, no caso de as notícias serem falsas. Sem a confirmação da agência noticiosa, o The New York Times recusou-se a imprimir a história. Outros meios não foram tão cautelosos e deram destaque de primeira página à invasão.
As notícias dos conflitos da Coreia também chegam a Portugal. O Diário de Notícias do dia 26 de junho de 1950 anuncia o início do conflito.
«A rádio de Pyongyang, capital da República Popular da Coreia do Norte, anunciou hoje de madrugada que aquele país declarou guerra à Coreia do Sul».
A invasão chegava depois de anos de tensão na península coreana. Com o fim do domínio japonês, após a Segunda Guerra Mundial, o território foi divido. Na Coreia do Sul foi criada a República da Coreia, liderada por Syngman Rhee, com influência norte-americana (ocidental). Na Coreia do Norte surgiu a República Popular Democrática da Coreia, chefiada por Kim Il-Sung, pró-soviética. Em 1948, tratavam-se de duas nações independentes, divididas pelo famoso paralelo 38.
E a guerra estala...
A estratégica geopolítica dos Estados Unidos não via na Coreia do Sul uma prioridade: em janeiro de 1950, nem sequer fazia parte dos estados protegidos pelo seu perímetro defensivo na Ásia. “No person can guarantee these areas against military attack” [Ninguém pode assegurar essas áreas face a um ataque militar], garantia o Secretário de Estado, Dean Acheson.
Kim Il-Sung, que já tinha manifestado o desejo de conquistar a Coreia do Sul e unificar a península, concluiu que a hipotética invasão não encontraria resistência norte-americana. Os seus planos foram para a frente em junho de 1950. O Conselho de Segurança da ONU emitiu uma recomendação no sentido da retirada das tropas norte-coreanas., sendo que do qual não fazia parte, por um outro desentendimento, a União Soviética.
Dois dias depois da invasão, a 27 de junho, o Presidente norte-americano, Harry S. Truman, divulga um comunicado: “I have ordered United States air and sea forces to give the [South] Korean Government troops cover and support.” [Ordenei às forças aéreas e marítimas que dessem cobertura e proteção ao exército do Governo [sul-]coreano]
Em conferência de imprensa, Truman insistia que os Estados Unidos não estavam em guerra. “Mr. President, would it be correct, against your explanation, to call this a police action under the United Nations?” [Sr. Presidente, seria correto, face à sua explicação, chamar a isto uma ação policial sob a alçada das Nações Unidas?], perguntou um repórter. “Yes. That is exactly what it amounts to” [Sim. É exatamente disso que se trata], respondeu o Presidente.
O Congresso norte-americano nunca chegaria a declarar guerra, abrindo um precedente no sistema político do país. A decisão solitária do Presidente, que Truman afirmava estar apoiada pela recomendação da ONU, foi elogiada por alguns comentadores políticos, que a consideraram “courageous” [corajosa]. No contexto norte-americano, a palavra «guerra» viria a perder precisão e as declarações de guerra passariam a ser vistas como desnecessárias ou inconvenientes. On Sunday, June 25th, Communist forces attacked the Republic of Korea. This attack has made it clear, beyond all doubt, that the international Communist movement is willing to use armed invasion to conquer independent nations. [No domingo, 25 de junho, forças comunistas atacaram a República da Coreia. Este ataque tornou claro, sem qualquer dúvida, que o movimento internacional comunista está disposto a usar uma invasão armada para conquistar nações independentes]
O General MacArthur foi o escolhido para liderar as operações na Coreia. Herói da Segunda Guerra Mundial, MacArthur gozava de vasta popularidade junto dos norte-americanos devido às vitórias conquistadas no campo de batalha pelo exército por si liderado. O General, os seus triunfos – e até a sua família – eram alvo de grande atenção mediática.
Os media norte-americanos seguiam atentamente os desenvolvimentos na Coreia. Tratava-se do primeiro conflito decorrido durante a Guerra Fria, um período de ansiedade e dúvidas em relação ao «perigo vermelho».
Os correspondentes
A cobertura mediática dominante reflete este espírito anti-comunista, pautando-se por um cenário de oposição entre «nós» [os americanos] e «eles» [os comunistas]. Existia uma narrativa oficial, criada de acordo com o contexto ideológico da época: as dificuldades do exército eram subvalorizadas e as vitórias exacerbadas, verificando-se uma cobertura pouco crítica das ações americanas. Os media reportavam notícias de uma nação comunista a invadir uma pobre e indefesa nação democrática.
A tecnologia incipiente fazia com que alguns jornalistas tivessem de voar até Tóquio, no Japão, para enviar as suas informações. Devido aos contratempos tecnológicos e logísticos e às dificuldades em obter informação, os repórteres tinham como principais fontes as altas patentes militares, sem contestar a sua veracidade. Nas fases iniciais da guerra, o The New York Times chegou a publicar verbatimas informações diárias divulgadas pelos militares, normalmente ocupando quase a totalidade da segunda página.
Entre os repórteres, erguiam-se algumas vozes dissidentes. Richard Johnson escrevia, em julho de 1950, no The New York Times: “in the last few bloody days of fighting, the bravado and self-assurance have given way to the sober realization that at best the United States troops face a long and costly campaign to drive the invaders from South Korea.” [nos últimos dias sangrentos de combate, a bravata e a auto-confiança deram lugar à compreensão sóbria de que, na melhor das hipóteses, as tropas norte-americanas enfrentam uma campanha longa e dispendiosa para expulsar os invasores da Coreia do Sul]
Também os meios britânicos eram mais críticos, pelo menos numa primeira fase, questionando a atuação americana e os números divulgados pelos militares. Grande parte dos repórteres ingleses que cobriram o conflito tinham estado na Segunda Guerra Mundial, pelo que já tinham experiência no relato de guerra, revelando uma abordagem mas cínica sobre o conflito.
Em setembro de 1950, travou-se a batalha de Inchon, que interrompeu uma série de vitórias da Coreia do Norte, marcando uma reviravolta no curso da guerra. Com o sucesso das tropas norte-americanos, os media do país deixaram-se contagiar pelo entusiasmo. “Since it became apparent that their Korean satellite was lost, the Russians talked more loudly than ever about peace” [Desde que se percebeu que o seu satélite coreano estava perdido, os russos falam mais alto do que nunca sobre paz], escrevia a Newsweek. “Korea had looked like a sure thing and it had blown up in Stalin’s face” [A Coreia parecia algo certo e rebentou na cara do Estaline], podia ler-se na Time.
O trajeto dos fuzileiros norte-americanos até ao território inimigo de Inchon foi acompanhado por Marguerite Higgins. A repórter do New York Herald Tribuneera uma exeção. As jornalistas do sexo feminino tinham sido banidas da frente de guerra, por se considerar que não existiam equipamentos disponíveis para as acomodar. Apesar da diretiva, o jornal norte-americano conseguira convencer MacArthur a autorizar Higgings a permanecer na frente de batalha. Por esta altura, Higgins era uma dos 330 repórteres acreditados.
Marguerite Higgins não era novata na cobertura da guerra da Coreia. A repórter escreveu sobre a capital sul-coreana nos dias que antecederam à invasão.
Quando o jornal enviou Homer Bigart, um repórter mais experiente, para cobrir o conflito, Higgins recusou-se a abandonar a Coreia, dando início a uma competição com Bigart pelas melhores histórias.
O seu estatuto enquanto correspondente de guerra foi-se estabelecendo junto do público, com destaque para o facto de ser uma repórter do sexo feminino. O seu estatuto enquanto correspondente de guerra foi-se estabelecendo junto do público, com destaque para o facto de ser uma repórter do sexo feminino. Muito embora os media referissem que, “in her ‘working clothes’ as a war correspondent in Korea, Marguerite Higgins still manages to look attractive [nas suas “roupas de trabalho” como correspondente de guerra na Coreia, Marguerite Higgins continua a ser atraente], a jornalista tornou-se a primeira jornalista do sexo feminino a vencer um Prémio Pulitzer pela sua reportagem internacional.
Marguerite Higgins não foi a única mulher a reportar a partir do palco da guerra. «A correspondente de O Globo salva-se de para-quedas na Coreia», podia ler-se na manchete d’ O Globoa 5 de junho de 1951. Tratava-se da portuguesa Fernanda Reis, enviada especial do jornal brasileiro para a Guerra da Coreia. A repórter acompanhou uma operação de retaliação aérea levada a cabo pela ONU, depois de as forças norte-coreanas terem atacado a sua posição, um cenário dramático que Fernanda não viria a esquecer: «Montões de carne e de ossos, ensanguentados, sem feitio da gente que foram, mutilados, dispersos, parecendo – que Deus me perdoe a comparação – peças de um puzzle monstruoso».
O destaque televisivo
Em 1950, a televisão começava a dar os primeiros passos. Os jornais não eram o único meio a levar notícias da guerra ao público. A tecnologia de satélite ainda não estava disponível, pelo que as gravações tinham de ser enviadas por meio aéreo para as emissoras. Um processo demorado, que fazia com que as notícias perdessem atualidade. Assim, os jornais e a rádio continuavam a ser os principais meios de informação.
Durante a guerra da Coreia, a televisão era um meio emergente, pelo que as emissoras não estavam preparadas para cobrir um conflito com recurso a imagem e som. Recorriam a agências de produção de newsreel, mais habituadas à produção audiovisual.
As televisões utilizavam também imagens recolhidas na frente de batalha pelos fotógrafos dos U.S. Army Signal Corps, mas estas não eram captadas segundo um critério jornalístico: mais uma vez, eram aquilo que os militares queriam que os americanos vissem da guerra.
Os media que não possuíam condições técnicas ou financeiras para enviar correspondentes especiais manifestavam grande dependência das fontes militares. Mesmo os repórteres destacados na linha da frente contavam com apoio militar para transporte e assistência, uma relação próxima que punha em causa a objetividade dos jornalistas. Apesar da proteção militar, 11 repórteres acreditados morreram durante a cobertura da Guerra da Coreia.
Edward Murrow foi o principal protagonista da cobertura da CBS, com o programa See it Now, onde conseguia mostrar o lado humano do conflito.
Em agosto de 1950, apenas sete semanas depois do início da guerra, Murrow comentava a devastação causada nas aldeias norte-coreanas: “Their pitiful possessions have been consumed in the flames of war. "Will our reoccupation of that flea-bitten land lessen, or increase, the attraction of Communism?” [As suas paupérrimas posses foram consumidas nas chamas da guerra. A nossa reocupação daquela terra abandonada e decrépita irá reduzir ou aumentar a atração do comunismo?]
As palavras de Murrow foram gravadas, mas não chegaram ao ecrã. A CBS censurou a reportagem, por considerar que poderia prejudicar os esforços de guerra. No final de 1950, o General MacArthur impôs censura sobre a informação que chegava dos jornalistas destacados na Coreia. Até então, os repórteres não estavam sujeitos a restrições sobre o que publicar, mas, mesmo assim, nem todas as informações eram passadas para o papel. George Herman, enviado especial à Coreia, tinha por política não escrever qualquer informação que pudesse ajudar o inimigo. “All of us in the press corps, knew there was going to be an invasion at Inchon in a couple of weeks […] Without censorship there was no restriction on us, but nobody leaked the story.” [Todos nós no corpo de imprensa sabíamos que ia haver uma invasão em Inchon dali a algumas semanas. […] Sem censura, não havia restrições, mas ninguém noticiou a história]
Na Coreia do Norte, os meios de comunicação eram extremamente controlados, contribuindo para o culto de personalidade de Kim Il-Sung e tornando-se um veículo propagandista. A liberdade de imprensa era também um mito na Coreia do Sul. A 1 de novembro de 1950 era fundado o The Korea Times, um jornal diário escrito em inglês com o objetivo de cobrir a guerra, dentro e fora de fronteiras. O Presidente Rhee, que mantivera relações favoráveis com a publicação numa primeira fase, mostrava a intenção de pressionar o jornal para que a linha editorial lhe fosse favorável.
Na frente de batalha o conflito agudizava-se. Truman autoriza as tropas norte-americanas a avançar para além do paralelo 38, que marcava a divisão entre os territórios. Em outubro, comunistas chineses juntam-se à luta contra as tropas americanas. Uma vitória que parecia fácil para os Estados Unidos começa a transformar-se numa luta para não ser derrotado. À frente do exército norte-americano, o General MacArthur manifestava a sua frustração pela estratégia de Truman em manter a guerra circunscrita à Coreia, que o impedia de atacar a China. Tratava-se, defendia MacArthur, de “an enormous handicap, without precedent in military history.” [um enorme entrave, sem precedente na história militar]
A 11 de abril de 1951, MacArthur é afastado. Truman comunica ao país a decisão. “I believe that we must try to limit the war to Korea […] A number of events have made it evident that General MacArthur did not agree with that policy. I have, therefore, considered it essential to relieve General MacArthur.” [Acredito que devemos tentar limitar a guerra à Coreia […] Uma série de eventos mostrou que o General MacArthur não concorda com essa política. Considero, por isso, essencial, dispensar o General MacArthur]
A partir de Tóquio, o General descobre o seu afastamento através da chamada de um subordinado, que escutara a notícia na rádio minutos antes. Numa primeira fase, os norte-americanos ficaram solidários com MacArthur, com a aprovação pública de Truman a descer.
O General regressa aos Estados Unidos como um herói. O seu discurso perante o Congresso foi interrompido 30 vezes com ovações. A frase “old soldiers never die, they just fade away” ficou para a História. Mas também o mito que envolvia MacArthur se desvaneceu. A reputação do general viria a ficar prejudicada com as audições dos comités de relações internacionais e serviços armados do Senado, em maio de 1951.
Na Coreia, a batalha parecia ter acalmado. No início de 1951, os combates tinham atingido um impasse. Em agosto, após a emissão de uma resolução por parte das Nações Unidas, os Estados Unidos, a China, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul dão início às negociações de paz. Nos media, a Guerra da Coreia era eclipsada por outras tensões crescentes da Guerra Fria.
Os tiros cessam mas o conflito continua
Em novembro de 1952, Dwight D. Eisenhower é eleito Presidente dos Estados Unidos, tendo como um dos seus compromissos o retirar do exército americano da Coreia assim que possível. O Presidente visita a Coreia a 29 de novembro de 1952. A guerra estava prestes a chegar ao fim.
O armistício era assinado a 27 de julho de 1953, após dois anos de negociações.
Eisenhower dava as notícias ao país. “An armistice was signed almost an hour ago in Korea. It will quickly bring to an end the fighting between the United Nations forces and the Communist armies.” [Um armistício foi assinado há quase uma hora na Coreia. Vai rapidamente colocar um ponto final nos combates entre as forças das Nações Unidas e os exércitos comunistas]
Nos media, o consenso era que as tréguas não eram nem uma vitória nem uma derrota para os Estados Unidos, mas sim parte de um conflito muito maior com as forças comunistas. No armistício, assinado em 1953, era acordado um cessar-fogo até se chegar a um “final peaceful settlement” [acordo final de paz], que continua por encontrar até hoje.
A tensão entre as nações não se dissipou com o passar das décadas. A 25 de junho de 2015, no 65.º aniversário do início da Guerra da Coreia, a Coreia do Norte apelou ao mundo que se junte a si para “dismember the gangster US imperialists.” [desmembrar os gangsters imperialistas norte-americanos]
O grupo Guardians of Peace hackeou o sistema de computador da Sony, divulgando informação interna e dados sobre futuros lançamentos e exigindo à Sony que cancelasse o lançamento de The Interview, que chamavam "the movie of terrorism" [A Coreia do Norte queixou-se às Nações Unidas sobre The Interview, com a justificação de que promove terrorismo contra o país]. A poucos dias da estreia, os hackers ameaçaram levar a cabo ataques terroristas nos cinemas que exibissem o filme, que não se chegaram a concretizar. The Interview viria a tornar-se o lançamento online mais lucrativo da história da Sony.
Mais de 60 anos depois do final da guerra da Coreia, as feridas ainda estão por sarar. As diferenças políticas, sociais e culturais entre os dois países criam tensão constante na península. A Coreia continua divida no paralelo 38.