PS e PCP sentam-se à mesa
A 6 de novembro de 1975, naquele que é o primeiro debate televisivo no pós-revolução, o líder do Partido Socialista Mário Soares e o líder do Partido Comunista Álvaro Cunhal defrontam-se e confrontam projetos e ideologias antagónicas e em rota de colisão. Mas… «Olhe que não!»
Um cigarro aceso abre a emissão da RTP a 6 de novembro de 1975. José Megre abre as hostes do primeiro debate transmitido em direto para o país inteiro. De um lado, Mário Soares, secretário-geral do Partido Socialista; do outro, Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português.
O debate entraria para a História da televisão portuguesa, não só por ser o primeiro, mas também pela sua duração. Durante três horas e meia, Joaquim Letria e José Megre moderaram a conversa no programa televisivo Responder ao País. Um formato irrepetível nos dias de hoje.
As duas figuras da política nacional abordaram os grandes temas da altura, desde o Movimento das Forças Armadas, as manifestações de trabalhadores, a estatização da comunicação social e a descolonização até à ideologia socialista.
Mas a troca de palavras rapidamente aqueceu. O que começou com umas simples perguntas por parte dos jornalistas, escalou para uma verdadeira batalha verbal. Quando Mário Soares acusou o seu oponente de querer instaurar uma ditadura em Portugal, a resposta «olhe que não, olhe que não!», de Álvaro Cunhal, gravava-se para sempre na memória dos portugueses – e no léxico político português.
O estúdio e as mesas pouco ajudavam à estética do cenário, e aos discursos políticos faltava-lhes brilhantismo – e soundbites.
O rescaldo do Verão Quente
O contexto? Acabava-se de sair do chamado «Verão Quente» de 1975, numa altura em que a sociedade se radicalizava entre esquerda e direita. Em pleno rescaldo da revolução de 25 de abril, Portugal vivia um momento político conturbado, marcado por sucessivos governos provisórios e ruas em permanente ebulição.
Tudo começou a 11 de março de 1975, quando tropas paraquedistas ligadas ao general Spínola atacaram o Regimento de Artilharia Ligeira (RAL1), em Lisboa.
O objetivo? Travar a operação «Matança da Páscoa», um alegado golpe da autoria da extrema-esquerda em Portugal.
Após algumas horas de tensões que resultaram num soldado morto, o golpe de Spínola saía gorado, obrigando-o a exilar-se. As hostilidades estavam oficialmente abertas para o verão mais quente da história política portuguesa.
O enredo adensa-se. No Alentejo e no Ribatejo, as grandes herdades são ocupadas e as grandes empresas ficam nas mãos das comissões de trabalhadores. A Banca, os seguros e os transportes são nacionalizados.
A 25 de abril de 1975 o PS ganha as eleições para a Assembleia Constituinte, com 37,8% dos votos, enquanto o PCP não passa dos 12,4%. A 1 de maio, o PCP impede Mário Soares e a delegação do PS de chegar à tribuna no Estádio 1.º de Maio.
A instabilidade nos media
A Rádio Renascença, entretanto alvo de várias greves e discussões em torno da sua concessão, é ocupada pelos trabalhadores. A 19 de maio, rebenta o caso «República»: a administração do República é acusada de tentar transformar o jornal num órgão afeto ao PS.
As instalações são ocupadas e, no exterior, o PS organiza uma manifestação de apoio à antiga direção. A concentração aumenta e as tensões fazem-se sentir.
São entoados hinos e proferem-se palavras de ordem contra os «ocupantes» do edifício, contra o PCP, contra Álvaro Cunhal e contra o MFA. O jornal é encerrado definitivamente.
O PS abandona o Governo, acompanhado pouco tempo depois pelo PPD/PSD, provocando a queda do IV Governo Provisório no dia 17 de julho de 1975.
Dois dias depois, o PS organiza o comício da Fonte Luminosa, naquele que foi o discurso mais duros de Soares contra o PCP.
A 8 de agosto nasce o V Governo provisório, o último chefiado por Vasco Gonçalves. O período que ficaria indubitavelmente conhecido por «gonçalvismo» deu aso a um outro marco importante.
A administração do Diário de Notícias é alterada, e Luís de Barros é nomeado diretor e José Saramago diretor-adjunto do jornal. Vários jornalistas põem em causa a orientação ideológica do jornal que, supostamente, estaria a ser manipulado a favor do Partido Comunista Português.
É então entregue à direção um abaixo-assinado que defendia a revisão da linha editorial e exigia a sua publicação. Um dia depois, o documento apareceu publicado no Expresso e tinha sido enviado à BBC. Esta ação resultaria na suspensão de 24 jornalistas, que ficaria eternamente conhecido como o «saneamento dos 24».
A instabilidade nacional
O país dividia-se ao meio. Os ataques a sedes do PCP proliferam, e divisões no MFA levam ao nascimento do Grupo dos Nove, liderado por Melo Antunes.
O Jornal Novo anuncia em manchete: «Documento Melo Antunes. O grupo não-radical propõe uma alternativa para a crise política». Estava criada a ala mais moderada do Movimento das Forças Armadas.
A 2 de setembro, a assembleia de delegados do exército rejeitou a indicação do Presidente da República, Francisco Costa Gomes, de Vasco Gonçalves para Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). Vasco Gonçalves acaba por ser afastado do poder.
Mais tarde, a 19 de setembro de 1975, o VI Governo provisório, chefiado por Pinheiro de Azevedo, toma posse.
A 29 de setembro, numa «medida de emergência» tomada pelo Governo, os estúdios de várias rádios e da RTP foram ocupados na tentativa de evitar o “estado de emergência” no país.
Contudo, as dificuldades com os meios de comunicação ainda viriam à tona mais tarde, quando a redação do jornal O Século entra em disputa ideológica.
Dois grupos entram em confronto: um afeto ao Partido Comunista Português (PCP) e outro ao Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), que culmina num referendo interno que decidiu a demissão do diretor Adelino Tavares da Silva e do subdiretor Joaquim Benite.
A decisão não agrada a muitos, e acaba por conduzir ao afastamento de dezasseis elementos daquele órgão de comunicação.
A fumaça e o sequestro
As tensões estavam longe do seu fim. No dia 9 de novembro, decorre uma manifestação de apoio ao VI Governo Provisório, promovida pelo Partido Popular Democrático (PPD) e pelo Partido Socialista (PS) no Terreiro do Paço, em Lisboa.
A explosão de gás lacrimogéneo que se fez sentir no meio da concentração causou algum pânico, e levou à proclamação da famosa frase de Pinheiro de Azevedo: «Não há perigo. O povo é sereno, ouçam. É apenas fumaça».
No dia seguinte, os trabalhadores da construção civil entram em greve e concentram-se junto à Assembleia Constituinte. Os manifestantes, decididos em pressionar o Governo até que este aceitasse um acordo favorável, não permitiam que os deputados saíssem do edifício.
Dá-se início ao mais famoso cerco da História política portuguesa.
Só na madrugada de dia 14 é que os dirigentes sindicais e Pinheiro de Azevedo chegaram a um acordo. O Primeiro-Ministro compromete-se a colocar em vigor o Contrato Coletivo de Trabalho a partir do dia 27 de novembro.
Na memória ficariam as palavras de Pinheiro de Azevedo à saída da Assembleia: «Não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia».
Os eventos polémicos deste verão prolongar-se-iam até novembro, mais concretamente dia 25 de novembro, momento em que o Grupo dos Nove ditaram a sua supremacia.
Ao terem conhecimento de que um possível golpe militar poderia estar a ser preparado pela extrema-esquerda, o Grupo dos Nove decide intervir militarmente, pondo um fim na influência das forças políticas radicais e permitindo a instauração de uma democracia pluralista política e constitucionalmente baseada num regime semipresidencialista.
O PREC (Processo Revolucionário em Curso) passava a ser Processo Constitucional em Curso.